“Kiss me, Kate: o Beijo da Megera” é reflexo da maturidade da dupla de diretores Charles Möeller e Claudio Botelho. Montada em 30 dias, a peça que tem no elenco nomes como José Mayer, Alessandra Verney, Chico Caruso, Fabi Bang, Guiherme Logullo e outros é um clássico musical americano. Com pitadas de Shakespeare e criação de Cole Porter, o texto marcou época e também a vida de Charles e Claudio. Coincidência ou destino, o primeiro grande sucesso dos dois como dupla foi “Cole Porter – Ele nunca disse que me amava”, tinha Alessandra Verney no elenco e Chico Caruso assistiu 16 vezes.
“Ninguém queria mexer nessa obra, era um sucesso enorme, quase uma joia. Quando fez 50 anos, em 1998, teve a primeira remontagem. Nós dois assistimos aquilo e pensamos que nunca ia ter no Brasil, aí pegamos as músicas e fizemos um piano-bar”, relembrou Charles, endossado por Claudio: “Foi nosso primeiro grande sucesso. Entramos para ficar um mês e ficamos por três anos. Era tanta procura que eu trabalhava na bilheteria também. Eu e Charles estávamos começando, só tinham mulheres no elenco e o Chico ajudou Cole Porter a se tornar assunto na cidade”, declarou.
A peça conta uma história cheia de metalinguagem, já que Charles e Claudio descobriram, dentro do trabalho de Cole Porter, muitas referências de Shakespeare. Dessa forma, incluíram, dentro de “Kiss me, Kate”, partes de “A Megera Domada”. A peça conta a história dos bastidores de uma companhia de teatro, com tramas como a do protagonista Fred Graham (José Mayer), dono da companhia que segue em turnê com a montagem de “A Megera Domada”, de William Shakespeare. No palco da ficção, Fred e sua mulher, Lilli Vanessi (Alessandre Verney), vivem um dos mais famosos casais shakespereanos, Petruchio e Catarina. “O metateatro sempre me interessou muito. Temos uma peça dentro da peça e ainda os diálogos de Shakespeare. É uma adaptação muito inteligente”, disse Charles.
A equipe, que desde a primeira leitura até a estreia contou com apenas um mês de ensaios, acredita que foi o tempo necessário para construir uma montagem memorável. “Esses 30 dias não seriam possíveis se não tivéssemos a equipe que temos, esse processo vem de antes. Trabalhamos muito há anos. Quando falamos 30 dias, sim, são, mas o resultado é de 25 anos, os últimos 15 com o mesmo time. Nos conhecemos no olhar, sabemos o gosto, a qualidade que queremos. Esse trabalho não começou ha um mês, começou há 25 anos, então estamos até lentos no processo”, brincou Charles, emendando que a organização foi essencial para que o trabalho funcionasse. “Se não tiver, não funciona. Nosso método vem contra o que se espera, de ensaios de seis meses, verborragia. Nós primamos pela ação, manter as pessoas ocupadas. Transformamos 24 horas em 240. Não é sorte, temos cabeça de coordenação e equipes maravilhosas”, declarou, referindo-se ao coreógrafo Alonso Barros, ao maestro Marcelo Castro e outros.
José Mayer tem a desafiadora missão de dar vida ao protagonista cheio de nuances. Com uma voz potente e afinada, ele acredita que a peça será sucesso de público. “Cole Porter é algo de que nossa época está precisando. Traz alegria, elegância, prazer, sagacidade e espírito agudo ao teatro. É um espetáculo sofisticado e bonito, um privilégio estar com essa dupla genial. É inacreditável a quantidade e qualidade do que eles produzem. Estar com Chales e Claudio me garante que estou em um projeto maravilhoso. No embalo do que houve com ‘Um Violinista no Telhado’, fiquei viciado em coisa boa e sucesso”, brincou ele, que estreitou seu laço profissional com a música a partir do musical da mesma dupla de diretores.
“O público não sabia que havia no Zé esse cantor. Aconteceu com outros que trabalharam com a gente. Muitos atores cantam, mas o mercado não existia. Presta-se pouca atenção em veteranos. Nós queremos que o teatro tenha cara de gente”, declarou Claudio. Os espectadores não sabiam, mas José Mayer tem uma relação forte com a música. “Eu era pianista no segundo grau e a música sempre se apresenta na minha vida. Um ator, mesmo que lide com texto, tem musicalidade, mexemos com isso, é um elemento importante e sempre me nutri dele na vida particular. É uma linguagem poderosa. Não vou dizer que é superior ao texto puro, mas a comunicação com o espectador feita através da música alcança outro patamar, é uma relação profunda”, disse Zé.
O novo personagem, de acordo com José Mayer, foi uma proposta irrecusável, mas voltar ao teatro já era uma vontade antiga. “Petruchio de Shakespeare e o Fred, equivalente moderno dele, são muito vitais. Por tudo, é uma oportunidade especial. Fazer teatro com esse conteúdo é muito bom. Esse personagem me seduz, me rejuvenesce”, analisou ele, emendando que o desafio de montar a história em 30 dias foi um estímulo a mais: “Foi brutal. É uma pergunta quase como ‘vamos subir o Everest amanha?’. Aceitei o convite pelo precipício que se abriu na minha frente. Quando junta-se talentos e material de qualidade como Cole Porter, as inteligências se acumulam. Estou fascinado com a experiência de 30 dias. Nunca vi isso na vida e asseguro a vocês: está maravilhoso. Não é excesso de autoestima”, garantiu ele.
Se os diretores apostam em fazer com que o público conheça diferentes vertentes de atores já experientes, o mesmo ocorre com outros profissionais. “Nós queríamos uma personalidade para o gângster que temos em cena. Quem poderia imaginar que o maior cartunista desse país estrearia como ator, cantando e dançando? O óbvio seria um teste com jovens, colocando barbinha, mas não. Nós trouxemos a história da vida do Chico para dentro de cena. Isso é nossa arte, fazer o público olhar as pessoas de foma diferente. Fica verossímil, legal, tão bom como novela”, ressaltou Cláudio, endossado por Mayer: “A arte da escalação. Eles sabem fazer como ninguém. Conhecem demais esse trabalho básico que dá alma para a montagem. Eu tive formação básica de música, mas a televisão me consumiu, a função do texto me tomou. De lá para cá, tenho sorte de fazer, a cada quatro anos, uma joia. Tive ‘Catullo’, em 2007 (“Um boêmio no céu”, obra de Catullo da Paixão Cearense), ‘Violinista’, em 2011 e agora essa. É a copa do mundo, para mim. A cada quatro anos eu venho e encontro no palco minha revitalização”, declarou.
Chico Caruso também teve suas motivações pessoais para aceitar o convite. “Sou de 1949, a peça de 1948. Ontem, quando vi pela primeira vez com figurino fiquei emocionado. Os tons pastel, do meu tempo. Eu vi Cole Porter 16 vezes, quando me chamaram, percebi que é sensacional isso de começar algo novo na minha idade. No teatro tem que entregar o corpo, tem que estar la tal hora e ficar até o fim. Representar é fácil. Tem um buraco do centro do palco que vai do centro da terra até Deus. É só ficar no buraco. Tem gente que fica um pouco do lado. Tem que ficar ali”, disse.
Alessandra Verney, que fez parte da primeira montagem de Cole Porter adaptada por Möeller e Botelho, contou que ter a oportunidade de encenar um texto de Shakespeare a seduziu e garantiu que interpretar duas personagens fortes no palco é incrível. “Eu nunca tinha tido contato com o universo shakespereano, apesar de ler textos e ver as peças. É interessante trabalhar as nuances de Catarina, que é um ícone, com a personalidade forte da Lilli Vanessi. Elas se fundem em uma só, é a metalinguagem da peça. Estou descobrindo muito, ainda. Tanto a Catarina como a Lilli são incríveis, tem a estrela de Hollywood cheia de manias, personalidade forte e aquela que é o símbolo da liberdade da mulher, de ir contra as convenções da época. É bem desafiador”, analisou ela.
Charles fez questão de afirmar que se sente muito feliz em levar o musical para a Barra, no Rio de Janeiro. “O público é diferente em qualquer lugar que se vá. Não faço teatro só porque amo Cole Porter, queremos dialogar com a plateia, isso é o mais importante. Se a gente acha lindo, mas não comunica, nós perdemos”, ressaltou. Claudio concordou com o parceiro e acrescentou: “É uma comédia musical de qualidade. Essa indústria só é possível há 15 anos no Brasil por causa da Lei Rouanet e patrocinadores. O teatro musical merece ser bem feito. Não ter deixado Cole Porter para o inimigo lançar mão é uma sorte. Estamos no lugar certo com o espetáculo certo”, garantiu.
José Mayer fez questão de dizer que o Teatro Bradesco é um dos melhores palcos em que já esteve e afirmou que, quando há a centelha do teatro, o público atravessa a cidade. “Nossa função é amar profundamente e obsessivamente o trabalho. A subida do Everest valeu, é deliciosa. O ar é rarefeito aqui em cima”. Mal podemos esperar para aspirá-lo com vocês.
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