*Por Jeff Lessa
Imagine a seguinte situação: você começa um trabalho novo. Tudo é novidade, os colegas se observam, se tratam com muita educação, talvez até com certa formalidade. Aos poucos, porém, vão se entrosando, conhecendo o ritmo de cada um, descobrindo afinidades, trocando confidências, marcando de se encontrar no fim de semana, se visitando. Almoçam juntos, tomam aquele chope no fim do dia, fofocam sobre um ou outro amigo em comum… Normal. E, quando menos esperam, voilà!, uma grande amizade se forma no meio daquele grupo de pessoas. Uma amizade daquelas que chegam para ficar e duram a vida toda.
Podemos dizer que foi isso que aconteceu com os atores Kiko Mascarenhas e Maria Eduarda de Carvalho. Os dois se conheceram durante as gravações da novela “O Tempo Não Para”, exibida pela Globo entre julho de 2018 e janeiro deste ano no horário das 19h. Eles faziam parte do núcleo de pessoas congeladas num naufrágio ocorrido no século XIX que voltavam à vida nos dias atuais.
Kiko e Duda ficaram tão amigos que, quando ele comprou os direitos de dois monólogos de autores ainda inéditos no Brasil para comemorar seus 35 anos de carreira, fez questão de presentear Eduarda com uma das peças, “Meninas e Meninos”, do inglês Dennis Kelly. Ela é dirigida pelo próprio Kiko e por Daniel Chagas. Para si, reservou “Todas as Coisas Maravilhosas”, dos também ingleses Duncan MacMillan e Joe Donahue, com direção de Fernando Philbert. Juntos, os atores ocuparam o teatro Poeirinha e ficam por lá até o final de julho.
Site Heloisa Tolipan: Para começar, eu queria que vocês contassem como são os monólogos. De que tratam, como desenvolvem os enredos, quais os pontos fortes.
Kiko Marcarenhas: As duas peças tratam de situações que estão acontecendo no dia a dia, no Brasil e no mundo. “Todas as Coisas Maravilhosas” fala de depressão e suicídio, assuntos que as pessoas não comentam. Mas esses temas muito difíceis são encarados de uma maneira leve. Um garoto descobre, com seis anos, que a mãe não se interessa por mais nada na vida. Ela mostra como fazer para se virar e revela que vai se suicidar. Então, ele passa a elaborar listas de coisas maravilhosas para provar para a mãe que a vida vale a pena. Ele passa a vida fazendo listas, que vão mudando conforme se torna adolescente, adulto…
Maria Eduarda de Carvalho: “Meninos e Meninas” apresenta uma mulher contando a história de sua vida profissional e amorosa de uma forma despudorada e totalmente honesta. Começa muito leve e vai tomando rumos inesperados. Não é pesado, mas carrega uma carga poderosa de reflexão. É o tipo de espetáculo que você assiste e passa a noite toda comentando. O monólogo fala do nosso poder de sermos violentos e aborda o machismo de uma forma extremamente original. Nunca tinha feito um espetáculo que exigisse tanto todas as noites. Mergulhar neste texto tem sido uma experiência intensa, por vezes muito doída. Não é fácil estar só em cena contando essa história, mas é fundamental. A importância social deste espetáculo para o Brasil de hoje me dá a certeza de que é preciso resistir e seguir.
HT: Kiko, como você conheceu esses textos? Conferiu as peças no exterior?
KM: Tenho um grande parceiro, o Diego Teza, que pesquisa textos pelo mundo. Na verdade, hoje ele é mais que um pesquisador, é um curador. Os representantes dos autores enviam textos para ele avaliar e ele aprova ou não. Primeiro, ele me apresentou “Todas as Coisas Maravilhosas”. Eu nunca tinha feito um monólogo na vida, não imaginava como seria. Gosto de elenco, de conversar no camarim, de me arrumar junto com os outros, de contracenar. Bom, quando ele me mostrou “Meninos e Meninas”, imaginei na hora a Maria Eduarda no papel. Era a cara dela. Ela queria escrever um texto para encenar e esse tinha todos os elementos que estava procurando.
MEC: Kiko me disse que o Diego tinha recém-traduzido um texto muito interessante para ser interpretado por uma mulher de idade indeterminada. Que era avassalador. Eu acho que é o tipo de espetáculo que precisa ser montado, especialmente no Brasil de hoje. Afinal, a missão do artista é ser um canal de comunicação com seu público. É fazer enxergar coisas que estão na ordem do dia com outros olhos. E esse texto é assim, necessário, deve ser conhecido. A peça está sendo montada em vários países, porque trata de assuntos que o mundo quer e precisa debater nesse momento.
HT: O fato de nunca ter feito um monólogo te deixou com algum receio de encarar a empreitada?
KM: Esse é o tipo de espetáculo único, nunca vou encontrar outro sequer parecido para encenar. Fui em frente, mesmo sem patrocínio. Chega um momento em que ou você faz ou desiste. O texto-base é sólido, dá segurança. Não há um ator contando a história para a plateia, eu preciso da plateia para contar a história. Antes do espetáculo, converso com os espectadores, pergunto se vão para a minha peça ou para outra. Formo um grupinho e tento identificar quem vai colaborar com o quê. É tudo muito íntimo, são só 62 lugares. A interação não é invasiva de forma alguma. Chamo de “teatro de contato”. A maioria das pessoas tem horror à interação. Mas nesse espetáculo a ansiedade acaba rapidamente. Tenho a impressão de que os espectadores saem orgulhosos por terem participado. Engraçado é que agora, com essa história de monólogo, eu me pego sozinho no camarim fazendo lives no Instagram! Eu, que nunca fiz lives na vida… (Risos)
HT: Eduarda, você já precisou encarar de frente algum medo proporcionado pela atividade teatral?
MEC: Na verdade, o teatro sempre me acalmou. Quando era criança, eu tinha pânico do escuro. Não conseguia ficar sozinha em um lugar sem luz. Mas, curiosamente, no teatro, isso se invertia. Eu ansiava pela escuridão. Queria que as luzes se apagassem logo para ser transportada para o universo mágico das peças. Desde cedo quis estar no palco. Comecei a estudar no Tablado com 13 anos. Quando contei para a família que seria atriz, meu pai fez eu prometer que me formaria e teria outra profissão. Então me formei em Artes Cênicas pela UniRio, mas nunca exerci. Antes de ser amiga do Kiko… Eu era fã devota dele. Mas nunca tínhamos trabalhado juntos. Percebi aos poucos como ele era generoso, humano, simples. Perdi aquele temor inicial de me aproximar, foi um medo que passou rapidamente!
HT: Como montar textos tão inovadores, escritos por autores inéditos no Brasil, sem ter qualquer referência? Quem é esse homem que passa uma parte tão grande de sua vida fazendo listas de coisas maravilhosas para tentar fazer com que sua mãe volte a se interessar pelo mundo? Como você construiu o personagem?
KM: Há “instruções” muito precisas, ao mesmo tempo que o autor te dá uma liberdade imensa para criar. Recebemos o texto com referências inglesas – a música é um exemplo. O autor aponta que toda a história precisa incorporar à cultura local. Ou seja, não é para fazer como se a ação se passasse na Inglaterra. Montou no Brasil, tem de adaptar para o Brasil. O sucesso é tanto, que está sendo encenada em 16 países nesse momento e a HBO fez um documentário sobre ela. Esse homem é um cara de classe média baixa, de 55 anos, que passa as férias em Barra do Piraí. O personagem precisa ter a idade do ator. Assim, a minha lista começa a ser feita em 1971, enquanto na Inglaterra começa em 1986 porque o ator inglês tem 40 anos. O personagem pode ser homem, mulher, gay, hétero. Mas há coisas que não podem ser mudadas. A lista precisa conter as realmente maravilhosas. E não pode ter itens repetidos nem de valor apenas material. Tudo precisa ser simples… O ator escolhe alguém na plateia para se referir como seu parceiro. Quando eu me sentir absolutamente seguro, vou escolher um parceiro homem. O personagem pode ser gay, gordo, alto, baixo… O que o ator quiser.
SERVIÇO
“Todas as Coisas Maravilhosas”
Teatro Poeirinha: Rua São João Batista 104, Botafogo – 2537-8053
Sextas e sábados, às 21h; domingo, às 19h
Bilheteria: Terça a sábado, das 15h às 21h; domingo, das 15h às 19h
Ingressos online: www.tudus.com.br
Informações: www.teatropoeira.com.br
Até 28 de julho
“Meninas e Meninos”
Terças, quartas e quintas às 21h
Até 25 de julho
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