Kika Kalache revive psicanalista no teatro, lembra aulas para pacientes psiquiátricos e o que enfrentou com a polícia


Atriz de “O Clone”, “América” e “Cobras e Lagartos”, onde desempenhou papéis cômicos, Kika Kalache vive uma psicanalista no teatro e conta experiências na vida real quando deu aulas em clínica psiquiátrica. Fora das novelas, ele poderá ser vista no longa “Enforcados”, de Fernando Coimbra, e está em “Lacuna” , drama disponível no Globoplay. Em entrevista, comenta que, diante de uma fase de perseguição aos artistas no governo passado, chegou durante uma abordagem policial ouvir que “sua profissão era suspeita”. Ela analisa que hoje há um momento de maior oxigenação, após ao que chamou de “caça às bruxas”

*por Vitor Antunes

Recorrentemente retratada nas artes por sua importância e colaboração na psicanálise, Melanie Klein (1882-1960) volta a ser incensada em “Sra. Klein“, montagem dirigida por Victor Garcia Peralta e que traz ao debate a relação familiar entre a psicanalista Melanie (Ana Beatriz Nogueira) e sua filha, Melitta (Natália Lage), mediada por Paula, vivida por Kika Kalache. Segundo Kika, o texto fará as pessoas se reconhecerem. “Sra. Klein” é uma peça “Inteligente sem ser hermética”, segundo conta a atriz. Na via real, analisada desde os 13 anos, em se tratando de saúde mental, Kika relembra quando deu aulas por dois anos e meio em uma clínica psiquiátrica: “Foi uma experiência incrível, aprendi demais”. Além desta peça, Kika poderá ser vista no longa “Enforcados”, de Fernando Coimbra, que entrará em circuito. O filme mais recente da atriz é “Lacuna” , drama que está disponível no Globoplay. “É um filme com um viés psicológico também, pontua”. Recorrentemente escalada para papéis cômicos na televisão, a atriz relata não incomodar-se com isso: “Eu acho incrível. Gosto de navegar nos estilos. Não me incomoda estar na comédia. Busco a graça no texto, na verdade dele”.

Ao revisitar sua carreira a atriz fala sobre a mudança de seu nome artístico, que coincidentemente é o mesmo de uma personagem sua de sucesso na TV, a “Kika” de “Cobras e Lagartos“. Este, porém, é seu apelido desde a infância. A artista deixou de profissionalmente assinar Christiana em razão de “ninguém conseguir falar o meu nome. Eu sempre acabava virando Cristiane, Cristine, Cristina… e cada hora era escrito de um jeito. E como eu nasci com nome e apelido desde sempre, assumi-o artisticamente já que assim sempre fui chamada”. Mãe do pequeno Joaquim, a atriz também fala sobre os desafios da maternidade na maturidade.

Diante de uma fase de perseguição aos artistas no governo passado – Kika chegou durante uma abordagem policial ouvir que “sua profissão era suspeita” -, ela analisa que hoje há um momento de maior oxigenação, após ao que chamou de “caça às bruxas”. Ressalta que sempre recebeu muito carinho do público. “Mas nos últimos tempos passou a ser corrente as pessoas vociferarem nas redes sociais contra Fernanda Montenegro, Caetano Veloso, e Aldir Blanc (1946-2020), que foram tratados como nada, como lixo, sem nenhum respeito. Houve algo maluco em algum momento quando víamos até pessoas próximas com discursos controversos que nos surpreenderam. Creio que atualmente há uma maior despressurização no que diz respeito a isso. Tanto que os teatros estão lotados”, finaliza, falando do reencontro do povo com o teatro.

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Kika Kalache, Ana Beatriz Nogueira e Natália Lage em “Sra. Klein”. Psicanálise e relações humanas em pauta (Foto: Lucio Luna)

ANÁLISE

Na peça “Sra. Klein”,  as atrizes Ana Beatriz Nogueira (Melanie Klein), Natália Lage (Melitta) e Kika Kalache (Paula) representam três psicanalistas e seus conflitos. Klein e Melitta são mãe e filha. Paula, amiga de ambas. Sobre a peça, dirigida por Victor Garcia Peralta, Kika diz que a montagem traz “dois universos incríveis, que dão muito pano para manga: Um é a própria psicanálise, já que todas são psicanalistas. O outro é a relação entre mãe e filha, um arquétipo importante”.

Como traz figuras emblemáticas da psicanálise como protagonistas, Kika nega que esta seja uma peça biográfica ou de difícil compreensão: “Ela tem a ver com psicanálise, mas vai além disso. Trata-se também de relações humanas. Tem um thriller como espinha dorsal, um mistério que envolve Hanns, filho da minha personagem. É como se a montagem fosse um jogo de detetive. Há quem ache que possa ser uma peça papo-cabeça sobre psicanálise, uma coisa meio intelectual, mas não. É inteligente sem ser hermética”. Ainda segundo ela, as três mulheres são pessoas que existiram de verdade, importantíssimas, que vieram, nos anos 1930, com uma teoria diferente do Freud (1856-1939). “Se nós, mulheres, estamos ocupando espaço e lutando até hoje, imagina naquela época? Além de tudo a minha personagem é uma refugiada judia”.

Nunca houve tempo fácil para mulheres, refugiados, minorias. E cada um com seu calo, com suas questões. É uma coisa da vida – Kika Kalache

A artista conta-nos que faz análise desde muito jovem e acredita ser algo fundamental: “Faço desde os 13 anos, acho importantíssimo. Há sempre algo a aprender sobre nós mesmos e sobre a forma de relacionar-se com o outro”. A atriz crê cada vez mais nas terapias psicológicas/psicanalíticas. “Acho que as pessoas hoje aceitam mais. A cabeça é um órgão como todos os outros. Quem tem problema pro coração, toma remédio para o coração. Para problemas de pressão, idem. A cabeça também é um órgão. Acho que tempos que brecar qualquer tipo de tabu e tabu, afinal são equívocos”.

Kika kalache há muitos anos faz terapia e acredita que hoje não haja mais preconceitos com relação a tratamentos psicológicos (Foto: Divulgação)

Aliás, por ocasião desta entrevista exclusiva ao site Heloisa Tolipan, a atriz relembrou uma experiência. Quando deu aula para pacientes psiquiátricos numa clínica deste segmento: “Ministrei por dois anos e meio. Foi uma experiência incrível, aprendi demais. O corpo médico acreditava muito nesta forma de terapia e era um trabalho, de alguma forma difícil e, ao mesmo tempo, desafiador. Os pacientes mudam muito, há muita gente tendo alta, além de uma alta rotatividade, mas era muito interessante. Fazíamos improvisações, contações de histórias, dinâmicas de grupo”, conta ela. Um dos professores de arte dramática de Kika foi Fauzi Arap (1938-2013), que trabalhou com a psiquiatra Nise da Silveira (1905-1999), pioneira do tratamento alternativo para pacientes psiquiátricos. Inclusive, por haver tido o teatro como disciplina na escola regular, a atriz lamentou que isto não seja mais habitual. “Na minha época, nas escolas, todos tinham aula de teatro. Creio que devia ser matéria escolar. Você aprende quando se relaciona com o outro”.

Kika Kalache deu aulas para pacientes com desordem mental numa clinica psiquiátrica do Rio (Foto: Divulgação)

KIKA

Quando viveu “Kika” em “Cobras e Lagartos“, a atriz assinava seu nome artístico de outra maneira: Era Christiana, tal como registrada na Certidão de Nascimento. Porém, depois da novela de João Emanoel Carneiro, exibida em 2006, a artista passou a assinar Kika Kalache. A contrário do que se chegou a cogitar na época, de que passara a assinar Kika em razão do sucesso da novela, na verdade é o contrário. Coincidentemente, este é o apelido de infância da atriz.

Um dos maiores desejos de Kika era a maternidade, mas “era difícil escolher a melhor hora. Tive quebrada a onipotência que eu achava ter. Nem sempre as coisas acontecem na hora em que a gente quer. Eu esperei muito, foi difícil, e quando o tempo já estava curto tive que fazer tratamentos, mas deu certo, graças a Deus”. Mãe de Joaquim, 8 anos, Kika diz que a maternidade tem desafios ainda que seja bela: “É uma pauleira. Quem quer ter filho, tenha, mas não é fácil nem financeira nem emocionalmente. No entanto, quando ele nasceu, eu não tive ansiedade nenhuma, nem pensei se estava perdendo personagens ou trabalhos. Fiquei três anos vivendo a maternidade”. Ao falar do menino, Kalache se derrete: “Eu acho ele incrível e muito parceiro”.