Julianne Trevisol e Amanda Mirásci vivem romance transexual dramático na peça “Uma Vida Boa”: “É um alerta que a gente quer gritar para o mundo”


No palco, as atrizes e o ator Daniel Chagas apresentam conflitos de uma geração que, apesar de parecer conviver bem com as diferenças, se mostra cada vez mais intolerante

Uma história que vale a pena ser contada! Sucesso de crítica e público, o espetáculo “Uma Vida Boa” retorna aos palcos do Rio de Janeiro para contar a dramática, porém, necessária trajetória de B., um jovem transexual que nasce do gênero feminino, mas decide assumir sua identidade masculina ao atingir a maioridade. No palco, Amanda Mirásci, Julianne Trevisol e Daniel Chagas trazem os conflitos de uma geração que, apesar de parecer conviver bem com as diferenças, se mostra cada vez mais intolerante às minorias espalhadas mundo afora. Baseado em uma história real passada nos Estados Unidos em 1993, o espetáculo, que segue em cartaz no Solar de Botafogo, até o dia 19 de dezembro, traz Amanda como protagonista e Julianne como sua namorada. Mas muito se engana quem pensa que a peça se trata de um simples romance. Em entrevista exclusiva ao HT, as atrizes contaram que, mais do que um entretenimento, a produção serve de alerta para os crimes de homofobia assistidos todos os dias por uma sociedade preconceituosa.

Julianne Trevisol e Amanda Mirasci (Foto: Renato Manglin)

Julianne Trevisol e Amanda Mirasci (Foto: Renato Manglin)

Para Amanda, um dos grandes desafios durante a composição de B. foi tirá-lo do lugar comum que a classe LGBT é representada na dramaturgia. “Eu brinco dizendo que não sei se vou fazer uma personagem tão difícil como esse. De uma complexidade tão grande. O maior desafio foi ser sensível e respeitosa com os trans – e isso tem acontecido muito. Eu gostaria que eles fossem ao teatro e se vissem representados de uma forma legal. Não queria ser caricata”, disse ela, revelando que a interação com outros transexuais foi fundamental como laboratório. Hoje, eles já se tornaram verdadeiros amigos da artista. “A participação deles nesse processo criativo foi imprescindível, para a peça e para a minha vida. Eu digo que virei uma pessoa melhor depois desse trabalho. O B. é uma responsabilidade social e o grande personagem da minha vida”, destacou ela, que também segue na telinha como a secretária Vanessa, de “A Lei do Amor”.

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A atriz, que também participa como idealizadora do projeto ao lado de Pablo Sanábio, propõe uma discussão ampla que vai além da questão da sexualidade. A intenção é levar para o teatro um produto que também sirva de reflexão. E, parece que tem funcionado muito bem. “Estava em busca de um trabalho que pudesse ter um forte impacto sobre o público e quando cheguei a esta história real, fiquei imensamente encantada com esse personagem e instigada pelo enorme desafio. É algo que precisa ser dito. Tanto que no final, ainda propomos um debate para encerrar qualquer dúvida que tenha ficado. Se a gente conseguir colocar essa pulguinha atrás da orelha de cada pessoa que passar pelo teatro, já está valendo” relatou. No decorrer na trama, o personagem, principal é assassinado, levantando a dura realidade vivida pelos transexuais. “O assassinato é a consequência final para algumas dessas pessoas, mas eles morrem todos os dias também com palavras. A peça é um alerta que a gente quer gritar para o mundo”, destacou. Além de “Uma Vida Boa”, a história também deu origem ao documentário “The Brandon Teena Story” (1998), de Susan Muska e Gréta Ólafsdottir, e o filme “Meninos Não Choram” (1999), de Kimberly Peirce.

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Agora, para compor seu personagem, Amanda confessou que assistiu a diversos documentários sobre o tema, como os já citados acima, viu filmes como “Tomboy” e mergulhou em livros como “Viagem Solitária”, de João Nery. Ah! E, apesar do assunto já parecer tão corriqueiro, muitas pessoas ainda têm dificuldades para entender e denominar o mundo trans. “Pude perceber como este ainda é um assunto desconhecido. Escutamos muito as pessoas se referirem a um trans como ‘aquela menina que se veste de menino’ ou ‘aquele menino que finge que é menina’ e não é isso. É uma pessoa aprisionada no corpo errado. Eles ficam muito magoados quando são tratados em gêneros trocados”, destacou a atriz

Quem também não passa nem um pouco despercebida no espetáculo é Julianne Trevisol. Na pele de L., a atriz solta toda sua veia dramática ao entoar momentos conflitantes ao descobrir a verdadeira identidade de B. Sucesso absoluto em “Totalmente Demais”, ela falou com orgulho sobre sua personagem. “Amo muito contar esta história. A peça fala sobre intolerância. Tem se tornado cada vez mais necessário se posicionar sobre esta questão. Todo mês transexuais são assassinados no Brasil e no mundo. Acredito que a arte é uma grande força transformadora e com a peça estamos ampliando esses questionamentos. A gente deixa no ar como intolerância está presente nos nossos dias e gera todo tipo de preconceito. A gente fala de ódio e amor – não de uma forma panfletária, mas abrindo o debate sobre o assunto. A gente quer que o publico vá para casa pensar. Como artistas, devemos, sim, nos posicionar por um mundo melhor e mais igualitário”, avaliou.

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E tratar de temas que fazem o público refletir em tempos de cóleras sociais não parece uma tarefa fácil. Porém, como Julianne nos disse, a dificuldade anda ao lado da importância em abordar o assunto através da arte. “Eu acho que é muito necessário. Esse acontecimento que a gente conta é uma história real passada em 1993. Mas, quando começamos a estudar, vimos o quanto era atual e como comunicava com tudo o que está acontecendo e que está cada dia mais em foco. Da outra vez que estivemos em cartaz, que foi por cerca de um ano, a gente também tinha debates durante a temporada. Isso foi muito importante para contar essa história e irmos aprendendo, conhecendo e mergulhando no tema. Eu acho que voltar é imprescindível nesse momento”, disse ela, que segue escalada para a websérie do Gshow, “Saideira”.

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E o aumento dassa intolerância contra o universo trans fez com que as atrizes ficassem ainda mais inquietas para abordar o tema. De acordo com elas, desde 2014, ano em que pela teve sua primeira montagem, para cá, o número de agressões e óbito dessas pessoas só tem aumentado. “É uma discussão totalmente necessária. Hoje percebo que as pessoas estão um pouquinho mais ligadas, mas ainda existe muita gente sendo assassinada e discriminada. Prefiro acreditar que esse índice um dia vá desaparecer. Estamos tentando fazer nossa parte através do teatro”, ponderou Amanda. Já Julianne, se disse indignada ao perceber que os casos de morte não amenizaram pelo país. “Quando fizemos esse recorte, para atualizar a peça, vimos que os trans continuam morrendo atá hoje. Em 2016, todos os meses um trans foi assassinado. É inadmissível que a gente ainda passe por isso”, destacou.

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Agora, deixando as estatísticas um pouquinho de lado, como em qualquer romance, as duas atrizes ainda se beijam em cena, inclusive, sem o menor problema, na montagem dirigida por Diogo Liberano, com texto de Rafael Primot. Para elas, apesar de ser o momento menos relevante da história, o fato já rendeu boas risadas para elas, que são amigas desde os tempos de faculdade. “Profissionalmente foi muito tranquilo. A cena é muito poética, mas a gente se divertiu muito no começo com esse história, porque temos uma relação de irmãs”, revelou Julianne. Já Amanda destacou uma fobia, digamos, mais inusitada durante as cenas de contato. “Uma das coisas mais difíceis foi pegar no pé da Ju. Eu tenho horror à pés”, contou ela, aos risos.

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No entanto, como toda boa idealizadora, Amanda viu de perto as dificuldades de conseguir patrocínio para financiar o espetáculo. De acordo com ela, além do preconceito que já existe contra o tema abordado, a crise econômica também tem afastado os grandes investidores do teatro. “Esse é um assunto muito delicado. Fico pesando em estratégias para levar às pessoas, porque viver de cultura nunca foi fácil. Mas o espetáculo tem edital da prefeitura, porque temos uma história muito potente. Tem que amar o teatro para se viver dele. Ninguém está ali para ganhar dinheiro. As pessoas estão ali porque acreditam naquilo. É a nossa forma de tentar melhorar o mundo e fazer esse lugar, que está a cada dia mais violento, melhor”, completou.