*Por Thaissa Barzellai
Em 1932, o sufrágio feminino foi concedido para as mulheres brasileiras. Esse foi um dos primeiros e mais importantes passos na garantia de mais direitos voltados para a atuação plena da mulher enquanto cidadã. Desde então, muitas águas rolaram, mas foi somente na década de 60 que a luta pela liberdade sexual e reprodutiva da mulher começou a ganhar mais força. A criação do método contraceptivo, da Lei do Divórcio, da extinção do artigo que permitia a anulação do casamento por falta de virgindade, do argumento de falta de virgindade como motivo para anulação de matrimônio, Lei Maria da Penha, Lei do Feminicídio, foram alguns dos feitos subsequentes que refletem em um comportamento feminino mais livre, confiante e impetuoso. É esta nova mulher que entra em cena no espetáculo ‘O Prazer é Todo Nosso’, protagonizado pela atriz e produtora Juliana Martins no Teatro Petra Gold, no Leblon, até 11 de fevereiro. No auge dos seus quase 50 anos, a atriz tinha interesse em retornar aos palcos com um trabalho que representasse a atual vivência feminina, mas por muito tempo encontrou somente um repertório onde ela não tinha vez.
Livre, leve e solta, a atriz mergulhou em um momento de descobertas e intensa expressão da sua libido sem qualquer amarra social. ‘’Eu não pensei: ‘’vou me desconstruir’’. Foi algo mais simples. Depois de 20 anos de um casamento monogâmico, eu queria ficar com um monte de gente. Simples assim. Foi algo muito mais leve e, naturalmente, veio o processo de entendimento dos meus desejos e de liberdade. Minha busca inicial foi me divertir, o que é completamente legítimo porque estamos sempre em busca de uma vida feliz’’, revela.
Foi diante dessa ausência e defasagem social que Juliana decidiu transformar a sua história com a liberdade sexual em peça. ‘’Eu venho de muitos trabalhos com textos sobre casais, mas não queria falar do universo homem-mulher, queria falar do feminino. Nós evoluímos muito de três anos para cá. A mulher na sociedade, a mulher com ela mesma, a relação e parceria com outras mulheres. Não importa a trama que fosse, o posicionamento da mulher não tinha essa nossa evolução’’, conta. Dirigido por Bel Kutner, o monólogo é baseado nas peripécias sexuais que Juliana Martins viveu logo após o fim do casamento que durou entre os seus 20 e 39 anos.
As histórias que integram o repertório do monólogo começaram a ganhar força nas mesas dos bares cariocas em conversas entre amigos e a reação das pessoas fez com que Juliana percebesse que tanto mulheres quanto homens poderiam vir a se identificar com ela. Desinibida e confiante em cena, surpreendendo a todos que a julgam pelo seu estereótipo delicado, palavras como piranha, galinha, cachorra, puta, vadia e quenga são ressignificadas, deixando de ser xingamentos para se tornarem palavras de empoderamento. O público se torna confidente de eventos envolvendo sexo sem orgasmo, tamanho de pênis, ejaculação precoce, menáge e tantas outras nuances de uma vida sexual ativa.
‘’Me sinto zero constrangida no palco, acho muito natural. É como eu acho que devia ser mesmo, não tem que ter tabu. Temos que transformar tabu em totem”, declara. Todo o processo de concepção do projeto, desde a vivência dessas situações até a troca com o público, foi essencial na trajetória confiante e liberta da atriz. Agora, ela sabe que o que impera é a sua autonomia e o julgamento alheio, datado, não tem espaço nesse novo mundo que está se abrindo para ela. ‘’É muito importante viver tudo isso sem ser julgada e continuar sendo romântica, boa mãe, boa filha e profissional séria. Entendi que uma pessoa bem resolvida sexualmente é mais feliz e resolvi viver o sexo sem culpa nem pecado”, conta a atriz.
Na contramão dessa sociedade pautada no etarismo, onde a mulher não é permitida a plenitude no processo natural de envelhecimento, aos 47 anos, Juliana sente que vive o seu momento sexual mais vital e nunca se sentiu tão bem no seu próprio corpo. ‘’Eu passei a conhecer melhor o meu corpo e a mim, e, com certeza, isso me deixou mais gostosa e feliz como um todo. Por enquanto, lido bem com o envelhecimento e acho que o tempo tem me feito bem não apenas pela minha aparência física como também por toda minha busca. Não sei como vai ser quando estiver mais velha, mas você me pergunta de novo (risos)”, diz a atriz que busca se perceber também deitada em um divã.
“’Eu tento entender o envelhecimento e me entender, então quando eu falo dessa forma está longe de ser somente pela minha aparência física. No fundo, é mais pela forma que eu tenho buscado o amadurecimento. Conversando, com terapia, lendo, eu estou sempre em busca do entendimento da minha mente.’’ O fim do casamento marcou para Juliana o início de uma vida repleta de possibilidades e experiências. No entanto, Juliana faz questão de frisar que o relacionamento foi uma fase de muita alegria e também de descobertas, ainda que fossem mais voltadas à relação do que a ela mesma. “O meu casamento foi muito feliz e eu levo o amadurecimento com a vida a dois, a maternidade, sexo com a mesma pessoa e a reinvenção, redescoberta e criatividade desse sexo. Nós tínhamos uma vida sexual bacana, mas eu me descobri mais safada depois, sem dúvidas”, diz.
Como uma “boa piranha romântica”, como ela se define durante o monólogo, Juliana não descartava o romance nem mesmo dos seus encontros mais casuais. Contudo, mesmo que tivesse se apaixonado por muitos nessa trajetória, a atriz sabia exatamente o que queria e não iria aceitar menos do que achava que merecia. Respeitar suas exigências foi um dos aprendizados dessa nova maturidade. ‘’Quando eu me separei, eu tive a sensação de ”caramba, estou sozinha”, não tinha uma pessoa do meu lado me dando a mão, então amadureci. Lógico que eu não posso enquadrar ninguém, mas tenho um entendimento muito grande de como são as características básicas de uma pessoa que gosto de ter ao meu lado. Consigo entender mais o universo da pessoa que me completa, já sei quem eu quero’, conta. E sabe mesmo. Sem titubear, Juliana Martins discorreu sobre a sua lista mental do homem quase perfeito, onde a regra número 1 é mais do que clara. ‘’Primeiramente, procuro uma pessoa de esquerda, que não seja bolsominion, isso para mim é característica número 1, é básico. Procuro uma pessoa divertida, leve, ligada nas artes, uma pessoa sexualmente satisfeita e madura’’. Apaixonada, feliz e realizada, Juliana vive um novo romance, que acolhe ela, suas escolhas e desejos. Para ela, uma relação não é sinônimo de prisão e o fato de estar dividindo a vida com alguém não anula em nada a sua liberdade e autonomia sexual. Pelo contrário, deve ser um espaço onde ela possa expressá-las intensamente. ‘’A experiência pode ser namorando também. O que eu prego na peça não é que você precisa ficar com um momento de gente, mas sim cada um se reconhecer como quer, entender o que você gosta e quer’’, conta a atriz que garante que ainda não tem histórias com o novo namorado em cena. Os dias dele no anonimato estão contados.
Um riso politizado
Embora a peça siga em grande parte pelo caminho da comédia, Juliana Martins aproveita a plataforma para abordar o outro lado do sexo: o do abuso, assédio e violência. Ela traça uma rápida linha do tempo das conquistas das mulheres, exaltando a importância da presença política feminina, e compartilha com o público experiências duras que ela viveu durante a vida, uma delas durante a infância. ‘’Essas cenas do assédio, da pedofilia, do abuso, foram uma das últimas que a gente resolveu colocar, porque quase todas as mulheres passaram por uma situação dessa. Se não foi ela, foi a tia, a prima, a irmã, esse tipo de situação sempre chega emocionalmente para uma mulher. Não tem como uma mulher falar de sexo, sobre sua vida sexual, sem isso, infelizmente”, declara. Para ela, por mais difícil que possa ser, são assuntos que precisam ser discutidos para garantir a segurança sexual das mulheres, ainda vítimas desses ataques em diferentes fases da vida.
De acordo com uma pesquisa divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em parceria com o Ministério da Saúde, só no Brasil 9% das mulheres brasileiras, totalizando 7,5 milhões de vítimas, e uma em cada sete adolescentes, já sofreram algum tipo de violência sexual. Uma das pautas contemporâneas feministas é exatamente a luta contra a cultura do estupro, que naturaliza a violação, em qualquer instância, do abusador e culpabiliza a vítima, a desmoralizando diante do crime – muitas vezes facilmente comprovados. ‘’É delicado. Ao mesmo tempo que é uma história pessoal, também é um papel social onde outros podem se sentir representados e se identificarem comigo, então dá sempre um medo, uma dúvida de não saber se eu queria expor. Você vive uma situação quando criança e já tem medo de falar. Na adolescência, ainda temos medo e não falamos. E depois adulta, mesmo com o mundo mais aberto eu, feminista, fazendo uma peça sobre isso, uma mulher livre, ainda fico com receio de falar. Falei, ultrapassei os meus receios, mas não sem questionar se não deveria mudar tudo e inventar uma outra história para não ser a minha’’, conta a atriz que trabalhou o trauma também na terapia.
No decorrer do espetáculo, Juliana Martins faz questão de frisar a importância da sororidade na sua vida e na luta feminina, essencial na construção de uma rede de apoio tanto para os momentos mais descontraídos quanto os mais austeros. ‘’De fato, temos que nos unir mais e mais, porque essa conversa de que mulher não se dá bem é muito bom para a sociedade patriarcal. Brigas entre a gente fortalecem muito mais os homens, temos que nos acolher’’, relata. Hoje em dia, Martins é cuidadosa em aplicar o conceito no seu dia a dia sempre que possível, principalmente no seu ambiente de trabalho. Mesmo que o texto seja assinado por um homem, todo o ponto de vista das histórias, que foram adaptadas de áudios enviados pela própria Juliana, é feminino e, para ela, era uma exigência que ao menos a direção fosse feita por uma mulher. Amigas desde 1991, quando trabalharam juntas na novela ‘Vamp’, Bel Kutner e Juliana Martins construíram uma amizade ao longo dos anos e, aos olhos da atriz, Kutner é a personificação da mulher contemporânea. ‘’Sempre achei a Bel uma mulher forte, livre, dona de si, gostosa, quente. Uma pessoa com fogo. Foi uma delícia trabalhar com ela, foi muito bom e nós nos aproximamos muito. A Bel é uma parceirona’’, diz.
De mãe para filha e vice-versa
Com uma filha de 21 anos ao seu lado, Juliana tem a oportunidade de mergulhar nos novos tempos a partir da perspectiva da filha, em quem ela enxerga os efeitos mais latentes das mudanças que o mundo tem vivido. A seu ver, a nova e as próximas gerações terão uma sociedade mais sexualmente consciente e liberdade, com uma compreensão maior acerca da expressão sexual. ‘’É uma loucura sexo ser tabu, nós temos que agir com mais naturalidade em relação a isso. Cada um é e pode ser o que quiser, e a nova geração tem um entendimento da diferença muito correto, como deve ser mesmo. Eles abraçam as diferenças e nem questionam. Embora eu seja muito ligada na evolução de todas as liberdades do ser humano, eu vejo que para o jovem de alguma maneira isso já nasce no DNA deles, sabe? No nosso ainda não e tinha que estar. Nós temos uma educação de sociedade toda errada em relação a isso. Se tudo der certo, eles não vão nem ter que se desconstruir’’, reflete.
Na residência de Juliana Martins, a relação é pautada na sinceridade, naturalidade e, principalmente, respeito para com os limites de cada uma. ‘’Eu nunca sentei para conversar sobre sexo com a Luísa, eu apenas falo. Nós temos o diálogo aberto, mas ela é minha filha, não é a minha amiga. É diferente, nós não ficamos falando sobre isso direto, ela não fica trocando exatamente comigo, isso ela faz com as amigas. Tem que ter limites”, diz. Para Juliana, os detalhes das experiências que vive são insignificantes no aprendizado sexual da filha, que esteve envolvida desde o início na fase de produção do texto da peça – elaborado em parceria com o autor e amigo Beto Brown durante a pandemia. O que vai prevalecer a longo prazo é o respeito que ela terá consigo mesma. ‘’Eu tento muito mais mostrar através de atitudes e conversas. Por exemplo, quando eu estou saindo com alguém e eu termino, eu conto para ela o motivo e ela vê que eu me respeito, que quando tem coisas que eu não gosto eu termino. Ela realmente não precisa saber se o cara goza na mesma posição ou não, mas ela pode e deve saber de outras coisas que vão ser pilares no entendimento dela como mulher”, conta.
Esse é o aprendizado que Juliana Martins espera que o público leve consigo após a sessão: uma relação mais livre e fruitiva com o sexo, seja ela como for, deixando para trás os sintomas dessa sociedade ainda cheia de tabus, que, para a atriz, é o retrato da hipocrisia e misoginia social. ‘’É como eu falo no início da peça: se fosse ruim e doloroso, não teria evolução da espécie. Nós precisamos do sexo para se reproduzir. [o tabu] é uma questão do pecado do corpo, da caretice, da tradicional família brasileira. É uma hipocrisia total que coloca [o sexo] como uma coisa errada e suja a nossa vida sexual. A mulher, por exemplo, perde a virgindade enquanto o homem transa pela primeira vez, é diferente. A mulher perde a virgindade, então a gente já começa a nossa vida sexual com a conotação de uma perda, como se fosse errado”, relata.
Piranha também ama e trabalha
O Gato Comeu. Riacho Doce. Vamp. Coração de Estudante. Belíssima. Novelas que fizeram história na teledramaturgia brasileira e na carreira de Juliana Martins, cujo grande primeiro trabalho na televisão se transformou em um marco que perdurou até os dias atuais: Malhação! Convidada a integrar o elenco, Martins, na época com 25 anos, foi, apenas, a primeira protagonista da série que se tornou antológica para a televisão e para muitos atores aspirantes. No início do projeto, Juliana achava que seria algo bobo, mas ao ler o roteiro e mergulhar na vida da bailarina Bella, logo percebeu que se tratava de uma linguagem revolucionária.
‘’Sempre achei que Malhação ia durar anos e anos, era um formato muito bom e Malhação soube se contemporizar, mudar com o tempo. Um programa feito com jovens para jovens, não tinha isso na época, então era um lugar de pertencimento desse grupo’’, diz a atriz que está à espera de convites para retornar às novelas. Imersa no universo feminino 40+, Juliana Martins quer trabalhos que reflitam as suas reflexões e questionamentos sobre a sua vivência e possam, de alguma forma, ressoar com outras mulheres. ‘’Seria bacana fazer um personagem urbano, de uma mulher de quase 50 anos com as crises e questões de uma mulher da minha idade. Simples assim’’, pontua a atriz que também pensa em investir na comédia, um gênero que floresceu com a realização da peça.
Com uma extensa carreira também nos palcos, Juliana, que recentemente estrelou o sucesso infantil ‘O Lago dos Cisnes’, tem caminhado mais pelos bastidores burocráticos das artes cênicas desde que criou a sua própria produtora em 2004. ‘’Produzir no Brasil é muito difícil, nossa política cultural é fraquíssima e estão tentando destruir as nossas leis de incentivo. Não temos uma política cultural, um governo, especialmente agora, que valorize a cultura e estimule a sociedade a consumí-la’’, declara Juliana que deseja produzir um espetáculo infantil e irá realizar, no segundo semestre, um festival de teatro no interior de Minas Gerais a fim de promover o contato com a arte em uma cidade que nunca nem teve teatro profissional. ‘’Tem muita gente que nunca foi ao teatro e por isso decidimos fazer o festival lá, totalmente gratuito. [arte e cultura] Abre a cabeça e aquece o coração”, pontua. É assim, com a arte na mente e no coração, que Juliana Martins segue enfrentando as pedras no caminho, sem perder a motivação e esperança que integra um artista. ”Espero sair [dessa temporada] com uma luz no fim do túnel para a cultura, espero sair com possibilidades de poder voltar a viajar com o teatro de continuar trabalhando.” Simples assim.
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