*Por Brunna Condini
“Somos todos feitos da mesma matéria que os sonhos são feitos. E nossa vida breve é circundada por um adormecer”. A frase de ‘A Tempestade‘ traduz a poesia com que William Shakespeare (1564-1616) olhava para a vida. E é através da adaptação deste intenso texto para teatro que Julia Lemmertz contracena pela primeira vez com a filha Luiza Lemmertz. “É lindo vê-la trabalhar. Esse era um desejo antigo que eu tinha, mesmo antes, com a minha mãe, com o meu pai. Luiza, além de minha filha, é minha colega de trabalho, que admiro. É uma atriz jovem fod# que está ali comigo. Também vejo nela minha mãe, meu pai, estamos todos ali em cena. Os que já foram, estão e estarão. Me pego assistindo a Luiza no meio do espetáculo e é uma delícia”, diz ela, sobre a peça que fica em cartaz até dezembro no Teatro Poeira, Zona Sul do Rio de Janeiro.
Julia é filha da atriz Lílian Lemmertz (1937-1986) e do ator Lineu Dias (1927-2002) e fala sobre o fato de Luiza ter seguido a mesma profissão e como fica a construção da própria identidade. “Quando comecei eram outros tempos. Eu tinha 19 anos, morava em São Paulo sozinha, meus pais eram separados. Foi tudo meio solitário e não existia essa coisa das pessoas seguirem a vida dos artistas como hoje, com a exposição atual. Acho que por isso tudo, foi mais tranquilo para mim, mesmo meus pais sendo grandes atores. Até porque essa comparação é injusta. Cada uma tem sua história. As comparações só existem para confundir, só criam angústia em quem está sendo cobrado ou comparado. Posto isso, a Luiza também quis tentar outras coisas antes de abraçar a carreira de atriz. Foi para o desenho, as artes plásticas, mas quando viu estava fazendo aula com a Camila Amado (1938-2021), trabalhando com o Zé Celso (1937-2023). Quando vi ela estava no Teatro Oficina. Começou a carreira quase com a mesma idade que eu, uns 20 anos”.
A atriz também é mãe de Miguel, de 23 anos, do seu casamento com o ator Alexandre Borges, de quem se separou em 2015, após 22 anos juntos. “Miguel é músico, rapper, tem um coletivo…está se formando em jornalismo, já trabalha com edição de som em uma produtora. Tem a coisa da música na vida dele desde pequeno, é algo que ama se dedicar”.
A vida pela frente
Com 40 anos de carreira – “Não me dei conta porque passou muito rápido” -, Julia tem um currículo povoado de grandes trabalhos no teatro, na TV e no cinema, mas afirma que ainda tem muito o que fazer, incluindo outra peça com a filha Luiza. “Foi um pedido do Zé Celso Martinez – que morreu em julho vítima de um incêndio em seu apartamento, em São Paulo – para encenarmos lá no Teatro Oficina, um texto de Nelson Rodrigues (1912-1980), que eu nunca encenei: ‘Senhora dos Afogados'”, revela.
Quero dirigir para cinema e já tenho um projeto que vou filmar no sítio com minha filha e o marido dela. Também desejo fazer um solo, um monólogo, algo que me permita realmente estar em qualquer lugar, alcançar muitas pessoas, falando coisas que eu queira realmente dividir, me aproximando ainda mais do público – Julia Lemmertz
Julia comenta ainda sobre o passar do tempo: “Quando fiz 60 anos, me dei conta que meu tempo está acabando, então me deu uma certa aflição. Essa angústia é pensando no tempo real que temos na Terra mesmo, não é a questão do envelhecer apenas. Devo viver uns 80, 90 anos no máximo, e espero mesmo que não passe por nenhum perrengue desses que fique durando muito e dando trabalho para os outros”.
Gostaria que o tempo útil que ainda tenho por aqui fosse bom, de qualidade – Julia Lemmertz
Ela também está no elenco de ‘Justiça 2‘, que estreia em outubro, no Globoplay, com 28 episódios. “Faço uma Julia na ficção. Ela depende financeiramente do irmão, Jayme (Murilo Benício), e vai descobrir que ele abusou sexualmente da sua filha, vivida pela Alice Wegmann, é terrível”, adianta ela, que está em outra série, ‘No ano que vem‘, escrita por Marcia Leite, mãe da atriz Maria Flor, que a dirige. “Essa estreia primeiro no Canal Brasil e depois vai para o Globoplay ainda esse ano”.
Sobre ontem e hoje
Em ‘Tempestade’, livre adaptação do clássico de Shakespeare, assinada e dirigida por Aluizio Abranches e Fernando São Thiago, que assina ainda a codireção, Julia vê a riqueza da abordagem de temas atemporais. “Ele propõe a discussão do poder, do amor, da vingança. Do que vale realmente a pena nisso tudo. Minha personagem, Próspera, que era um homem originalmente, leva um golpe e se exila em uma ilha com sua filha, querendo a reparação de tudo o que passou. Só que quando finalmente consegue, através da magia, dos poderes que tem e desenvolve além do tempo, percebe que nada daquilo vale a pena, porque no fim das contas, o que sobrou? O que sobra de uma vingança depois de tudo o que você passa? A personagem fica aprisionada nisso. O que adianta se vingar das pessoas que te fizeram mal, se elas vão continuar as mesmas, fazendo provavelmente igual? Ninguém muda ninguém. São considerações muito lindas, que Shakespeare coloca sabiamente em sua peça de despedida. Nela tem uma constatação profunda dos homens com suas conquistas”, observa.
Minha personagem acaba perdoando os golpistas, coisa que eu não faria. Anistia é o cacete. Mas a peça perdoa e no final é essa grande confraternização. Já eu, acredito que existem coisas imperdoáveis. O perdão permite que isso se repita e isso não pode se repetir. Não podemos dar ‘camisa’ para golpistas…acredito que as pessoas precisam ser responsabilizadas por seus atos – Julia Lemmertz
“É uma adaptação deste clássico feita por mulheres. Tirou os homens do protagonismo e nos colocou. Mas não é um resgate. Acredito que Shakespeare fez o que era possível para a época. Não tinha muito isso, era a cultura do período. Estava errado? Sim. Mas vamos reparando aos poucos. Não estamos até hoje reparando um monte coisas? Em pleno século 21 ainda não discutimos o papel da mulher na sociedade? Tudo isso é uma discussão mais complexa. O Aluizio quis colocar essas questões, acho interessante e delicado ao mesmo tempo, porque existem os puristas. No entanto, posso dizer que todos os profundos conhecedores de Shakespeare que foram até agora gostaram muito do recorte. O importante mesmo é embarcar na história”.
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