*Por Brunna Condini
Com mais de 30 novelas, trabalhos em teatro e cinema, Jayme Periard celebra quatro décadas de carreira. Longe da TV desde ‘Gênesis’ (2021), na Record, o ator fez uma participação no último episódio do especial ‘Falas da vida‘, que refletiu sobre o envelhecimento. O episódio faz parte da antologia ‘Histórias Impossíveis‘ e marcou o Dia Nacional do Idoso no começo do mês. Aos 62 anos, Periard também está em cartaz com o solo ‘A Quebra‘, no Teatro das Artes, no Rio. Com concepção e direção do próprio Jayme e dramaturgia de Regina Antonini, ‘A Quebra‘ nos conduz à reflexão sobre os inúmeros casos de abuso sexual contra menores na Igreja Católica. Já amplamente retratadas nos cinemas, através de documentários e filmes, e pela cobertura da imprensa mundial nos últimos anos, essas histórias são apesentadas pela primeira vez no teatro. O ator se reveza entre quatro personagens: o cardeal, o jornalista, o padre e a vítima. “Um dos fatores determinantes para realizar esse espetáculo, foi a minha própria origem católica. É minha origem familiar, estudei em colégio de padres. Comecei a fazer teatro neste espaço, então as portas da arte se abriam para mim com essa influência religiosa, e tudo correu sem interferências, censura. Era muito intuitivo, livre. Então, devo muito à minha origem católica, porque a minha iniciação artística se deu ali”.
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Não é um espetáculo contra a igreja, mas sobre esse problema dentro da instituição. Uma questão que a igreja, através do Papa Francisco, vem tentando enfrentar. Posso dizer que após esse trabalho a minha fé não foi posta em cheque, mas intensificada. Por mais que essas coisas sejam muito duras, reforçou minha crença no sagrado. Tratamos de temas humanos, infelizmente, de um lado muito ruim do ser humano. Por outro lado, você tem o depoimento de quem sobrevive a isso tudo. É para refletirmos – Jayme Periard
Nesta entrevista, Jayme fala do novo trabalho, da trajetória e do produtivo amadurecimento. E comenta, que nem a plena atividade em seu ofício o deixa imune ao preconceito com o passar dos anos, o tal do etarismo, que tem sido combatido nos últimos tempos, mas ainda se faz muito presente. “Eu, como tantos outros profissionais mais velhos, sofro com isso, claro. Mas tento não ficar preso à essa dificuldade. Tento ter um olhar mais tranquilo e ver como vou continuar me encaixando. O que estou fazendo neste momento? Estou produzindo um espetáculo. Sem nenhum patrocínio. Estou criando uma oportunidade de trabalho para mim , já que o mercado tem estado mais difícil. Nem todos os artistas têm essa possibilidade, mas é um esforço que teremos que fazer, nos associarmos para realizar projetos. As histórias precisam de personagens mais velhos, que precisam de atores para os interpretar. Estamos no meio do olho do furacão”.
E pontua, ainda analisando o assunto. “O etarismo é um fato. Minha geração sofreu duplamente, porque quando éramos jovens, poucos autores sabiam escrever para esse público. E agora, raríssimos autores escrevem para pessoas mais velhas. Obviamente a televisão, o audiovisual, funcionam baseados em mercado. E o olhar do mercado consumidor hoje é para o jovem basicamente. Esquecem que estamos vivendo mais, e portanto, também consumindo mais. O consumo não é só jovem”, avalia.
“Em nossa área existe a falta de interesse e conhecimento dramatúrgico sobre pessoas mais velhas, que continuam ativas, amando, sofrendo, desejando, enfim, vivendo. Além disso, vivemos inseridos em um mundo digital que muitas vezes é mais intenso do que o real. Neste universo conectado, surgiram várias outras profissões, como a de influenciadores, geralmente pessoas muito jovens. Essa atividade [e baseada em uma demanda, a dos influenciados, usualmente também jovens, que vão ditando esse e outros mercados. São transformações em ebulição que não tão simples para quem tem mais idade”.
Com passagem por produções na Globo, Record, Bandeirantes, SBT e pela extinta Rede Manchete, em que fez a icônica ‘Dona Beija’ (1986), que ganha remake na HBO Max protagonizado por Grazi Massafera, Jayme faz um balanço da jornada que começou já com o posto de galã na década de 1980. “Me sinto privilegiado nestes anos todos de ter estado em momentos muito bacanas da televisão. Comecei a solidificar a carreira na época mais criativa e em ebulição que tivemos na história recente do país, na arte em geral. Existia uma troca sem limitações de nada. Mas acho que o mais importante nestes 40 anos foram os encontros que a minha profissão me proporcionou. Tive a sorte de trabalhar com quase todos os meus ídolos, artistas que admiro, é uma trajetória feliz. Fui muito acolhido na minha carreira e posso dizer que não tenho arrependimentos. Tive grandes oportunidades e bons personagens para me exercitar, tenho sido feliz nisso, é um universo que tive o privilégio de escolher e de manter nestes 40 anos”, completa.
Para muitas pessoas têm sido mais duro. Não só pela falta do trabalho em si, no sentido financeiro, na manutenção da vida, como também na questão de não estar no exercício do ofício. Ficamos muito tristes quando não trabalhamos. É preciso que se escreva também para os veteranos, todos queremos trabalhar – Jayme Periard
Abordagem inédita
Em sua pesquisa, Jayme levantou que em vários países, comissões independentes têm feito levantamentos sobre os abusos, com resultados assustadores. São milhares de casos em centros católicos espalhados pelo mundo, como na Irlanda, Alemanha, Espanha, Austrália, México, Polônia, no Chile, Brasil, nos Países Baixos e em muitos outros países. A maioria dos abusos sexuais ocorreu quando as crianças tinham entre 9 e 14 anos. “São crianças, não estatísticas. O nosso espetáculo é todo baseado em fatos reais, com informações que estão disponíveis na internet para todos. Os depoimentos destas vítimas me tocaram muito. Parece contraditório que em um momento de celebração dos meus 40 anos de carreira eu queira fazer um texto tão denso, sensível, mas pelo contrário. Acredito que isso é reforçar a ideia de fazer um espetáculo que tenha significância social, artística, além só do entretenimento”.
O ator vai além. “Acho que o silêncio sobre esse tema, tão amplamente falado no mundo, se deve justamente ao poder dessa mitologia católica que é muito forte em nosso país, mesmo que seja um poder que não se imponha no dia a dia. Além disso, a igreja sempre foi muito lenta em suas mudanças, o que é uma dificuldade de tratar das suas feridas, só que neste caso é uma ferida que já passou do tempo, é real e imensa”, diz.
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