Isabel Fillardis faz balanço dos 50 anos, teatro, etarismo e negritude na TV e desabafa: “Nunca fui protagonista”


A atriz tem fundamental importância para se compreender o papel do negro na teledramaturgia brasileira. Eu tive a sorte de não ter que fazer apenas personagens escravizadas, mas, ainda assim, nunca fiz protagonista. Por isso, creio que, ainda que seja um momento importante o atual, ele também é, por si só tardio”, frisa. Isabel também comenta sobre seu novo projeto, uma peça de teatro na qual vive uma mulher que se descobre lésbica na maturidade. E, para falar sobre esse assunto, chamamos a psicóloga Daniella Martins. Isabel revisita a sua passagem no grupo musical pop “As Sublimes”, há 30 anos, e sobre o quão necessário foi falar sobre o fato de ter tido tireoidite de Hashimoto e melanoma: “Um dos privilégios de ser uma pessoa pública é fazer da minha voz um bem coletivo, trazer exemplos positivos e dar ênfase a isso”

*por Vítor Antunes

Quando Isabel Fillardis apareceu na TV a sua beleza e talento chamaram a atenção. Além disso, outros assuntos também acabaram por ganhar protagonismo: era uma das poucas meninas pretas a fazer trabalhos nas novelas. No início dos anos 1990, os elencos eram majoritariamente brancos. Segundo Isabel, o atual movimento de inclusão de pessoas pretas na televisão, ainda que importante, é tardio. “Viemos quebrando a pedra, lapidando o brilhante e, antes de mim já haviam atrizes, como Lea Garcia (1933-2023) e Ruth de Souza (1921-2019) que abriram espaço. Eu tive a sorte de não ter que fazer apenas personagens escravizadas, mas, ainda assim, nunca fiz protagonista. Por isso, creio que, ainda que seja um momento importante o atual, ele também é, por si só tardio”.

A atriz ressalta a importância de novelas como “Amor Perfeito”, trama recém encerrada das 18h, por ter um elenco majoritariamente preto “e que valorizou outras narrativas, nos viu como pessoas com vida real e foi um trabalho que a própria direção artística pleiteou que fosse uma trama colorida, que tivessemos os nossos cabelos e identidades. Destaca-se também o fato de os pretos nunca haverem sido retratados numa novela de época os Anos 1940 desta forma”. Nos últimos anos, Isabel Fillardis ficou fora das novelas. Retornou à Globo em “Amor Perfeito“, encerrada neste ano. Anteriormente à trama, fez o “The Masked Singer“, reality global onde os convidados participavam cantando fantasiados. Em 2011 fez sua última novela completa na Globo, “Fina Estampa“.

Somente em 2019 faria outra trama, desta vez na Record, “Topíssima”. Esse afastamento, assim como aquele que resultou da abdicação em ser a protagonista da série “Plano Alto” da Record, tem como uma das motivações a Tireoidite de Hashimoto – patologia que ataca a glândula tireoide –  e o melanoma, um câncer de pele. Para a atriz, haver tornado público o fato de ter essas condições, foi válido. “É peciso que humanizemos os artistas, fazer saber que eles passam por questões humanas e que têm problemas como qualquer pessoa. Um dos privilégios de ser uma pessoa pública é fazer da minha voz um bem coletivo, trazer exemplos positivos e dar ênfase a isso. É fazer do meu ofício algo que pode afetar positivamente as pessoas”.

Com 50 anos, Isabel salienta que “viveu muito mais revoluções aos 40. Aos 50 vivencio a afirmação do que eu quero ter como vida. Acho que estou mais segura, mais plena, mais feliz. Acredito estar, definitivamente num renascimento artístico e pessoal importante”. Porém, ainda assim, ela não silencia uma questão que se apresenta de forma contumaz às mulheres: O etarismo. “A mulher aos 50 precisa de mais disciplina, mais autoamor, mais autocuidado. Temos que estar sempre atentas e tomando cuidados com o corpo, a cabeça, a saúde emocional. Invisto muito em mim.  O mercado de trabalho para a mulher de 50 é mais dificultoso. Se por acaso ela resolve ser mãe nesta fase da vida, o mercado não a abraça, espcialmente se ela for preta”.

Isabel Fillardis está em cartaz com a peça “Abismo de Rosas“. Nesta, que é dirigida por Emiliano D’Ávila, tanto Isabel como ele e Vitória Strada interpretam vários personagens. Um daqueles que Fillardis vive é uma mulher que se descobre lésbica já na maturidade. Sobre essa questão, Isabel diz ser algo que a tocou profundamente “Quando eu escolhi fazê-la, me dei conta de que era a primeira vez que vivia uma mulher lésbica. Estou numa fase em que, artisticamente, busco novos desafios e complexidades nos personagens”.

É importante debater temas como esse, [do lesbianismo], por estarmos numa fase em que a mulher traz à tona sua força e essência, e ao mesmo tempo, há um alto índice de feminicídios. É preciso dar protagonismo aos aspectos femininos de relações e de que forma lidamos com isso – Isabel Fillardis

Isabel Fillardis analisa dos 50 anos de carreira e os desafios da mulher negra na dramaturgia (Foto: Divulgação/Globo)

A(S) SUBLIME(S)

Entre 1992 e 1993, Isabel Fillardis viveu uma transformação definitiva em sua carreira. Nesta época fez a sua primeira novela, “Renascer”, e quase que simultâneamente, ganhou projeção o grupo musical que fazia parte, o “As Sublimes“, trio onde, além de Isabel, havia Lílian Waleska e Karla Prietto. Ambos os movimentos têm 30 anos já. Sobre o trio musical, perguntamos se haverá alguma celebração pela data redonda, e a cantora despistou “Esse é um trabalho especial. Nós não detemos o nome e não sei se iremos fazer ou não algo celebrativo, mas é um movimento grande, ousado. Razão pela qual não faremos de qualquer forma. Depende de investimentos e possibilidades. Mas quem sabe não façamos um revival em 2024? Não há nada fechado, mas é um marco dentro da música preta brasileira. Afinal, de lá pra cá o Brasil não fez nada nesse segmento”. Quanto a “Renascer”, perguntada se sente ciúmes da novela ou de seu personagem, ela nega. “Trata-se de um trabalho riquíssimo, um xodó da minha vida. Eu só existo [como artista] por causa dela. O remake de um trabalho importante como esse é um desafio. Mas fico na expectativa sobre quem vai fazer os personagens, sobre o tratamento que vão dar. É uma novela lembrada ate hoje, um sucesso”.

Isabel Fillardis e as Sublimes. Grupo fez sucesso em 1993 (Foto: Divulgação)

Após haver estreado em 1993, na novela de Benedito Ruy Barbosa e se lançado na carreira musical, Isabel teve momentos muito pontuais no teatro. Trabalhou apenas na montagem de “Escrava Anastácia“, baseada na personagem histórica homônima. Sua volta aos palcos aconteceu em 2003, apenas com “A Turma do Pererê“. Conta-nos a atriz que essa chegada tardia aos palcos deveu-se ao fato de ter “começado a carreira na TV. Essas espaçadas se dão por conta de um viés financeiro. Nem sempre temos um teatro patrocinado e às vezes fica inviável conciliar o palco e TV. E é difícil bancar um espetáculo. É preciso haver um recurso mínimo e digno para se fazer uma encenação”.

Atualmente, Isabel pode ser vista em “Abismo de Rosas“, em cartaz no Teatro das Artes do Shopping da Gávea, Rio, até 17/12. Uma das pesonagens que interpreta, Beth, é uma mulher que se descobre lésbica na maturidade. Como lidar com a composição desta personagem sendo Fillardis uma mulher hétero? Para ela “trata-se de uma mulher complexa e interessante. Ela é uma terapeuta que não se compreendia. Para eu chegar a esse universo, conversei com amigas e tratei de trazer a homossexualidade de uma forma delicada e engraçada, com cuidado. Afinal, é um assunto que atinge a inúmeras mulheres”

A mulher passa por uma educação tradicional machista. É muito difícil para elas se verem nesse lugar, nessa nova perspectiva. É muito importante e libertador. Creio que há muitas mulheres que estejam vivendo isso. Elas precisam repensar o amor que vivem – Isabel Fillardis

Ante a um dos temas da montagem, perguntamos à psicóloga Daniella Martins – do Instituto Pride, que objetiva prover saúde mental para pessoas LGBTQIA+ – sobre a descoberta do lesbianismo na maturidade. Segundo ela, “desde os anos 1960 até existe uma maior liberação sexual. Por outro lado, as mulheres adultas de hoje, ou que já são idosas, são filhas ou netas de gente que viveu a ditadura. Fase em que a homossexualidade e a lesbianidade eram compreendidas como uma patologia, como um desvio de caráter. Então, se assumir para si e para a sociedade acaba envolvendo uma série de lutos, uma quebra de expectativas sociais  por não se encaixar na normatização, o luto de algumas relações, principalmente familiares, o luto das expectativas das pessoas… E aí, por consequência, é muito comum que muitas pessoas, e, no caso, mulheres, acabem construindo uma lesbofobia internalizada, por medo de rejeição, de violências, da solidão. O que pode levá-las a se casar com outros homens, a ter filhos com eles, inclsuive, como forma de se proteger”.

Há quem opte por viver essa vida dupla. E mesmo com marido, com a família, não se sente confortável, autêntica, inteira. Muitas dessas mulheres acabam dependendo de um recurso financeiro, afetivo e a vinculos familiares que acabam levando-a a essa invisibilização e silenciamento – Daniella Martins, psicóloga

A psicóloga prossegue dizendo que “É importante pontuar a partir de uma lente interseccional, que não existe experiência única do ser lésbica. É muito diferente pensar na vivência de uma mulher homossexual branca, que tem uma condição financeira favorável e que não depende de nenhum recurso financeiro da família pra se assumir na vida adulta, àquela que é negra, que está em situação de vulnerabilidade social, e que corre o risco de sofrer algum tipo de violência. É necessário singularizar essas vivências”.

As pessoas não têm escolha sobre sua orientação sexual, mas elas têm escolha sobre se assumir ou não. Quais são as condições de segurança financeira, afetivas que ela tem para se cercar? Então, incentivar o fortalecimento da rede de apoio e de afeto dessa pessoa é fundamental. É preciso desconstruir mitos de patologização, se munir de informação, fazer um letramento LGBT com a pessoa sobre os direitos dela, e assim construir e traçar esse caminho de autoaceitação e de afeto – Daniella Martins, psicóloga

Isabel Fillardis e Emiliano D’Ávila em “Abismo de Rosas” (Foto: Divulgação)