Isabel Fillardis: ‘Curar feridas profundas’, diz atriz após peça sobre vozes negras e homenagem à Kathlen Romeu


‘Luiz Gama: Uma Voz pela Liberdade’ e ‘Luiza Mahin… Eu ainda continuo aqui’ foram apresentadas de forma híbrida (virtual e presencial), no Teatro PetraGold, e são duas obras alinhavadas pela temática da luta antirracista e pelo parentesco dos dois biografados: Luiza Mahin, trazida para o Brasil no século 19 e escravizada, heroína da Revolta dos Malês, e mãe de Luiz Gama (1830-1832), vendido pelo próprio pai como escravo, mas que se tornou escritor e advogado de pessoas escravizadas. Após a exibição, foi realizada roda de conversa com a participação do roteirista Paulo Lins, da atriz Isabel Fillardis, do cineasta Jeferson De e da especialista em história da África Mônica Lima, mediados pela atriz Lica Oliveira. Na ocasião, foi erguido um cartaz lembrando a designer Kathlen Romeu, morta em uma incursão policial em Lins de Vasconcelos

Isabel Fillardis: 'Curar feridas profundas', diz atriz após peça sobre vozes negras e homenagem à Kathlen Romeu

*Com Bell Magalhães

Segundo Leonardo da Vinci (1452-1519), “a arte diz o indizível, exprime o inexprimível e traduz o intraduzível”. Então, o que fazer quando existe uma história que foi negligenciada e precisa ser compartilhada? A resposta é simples: Contamos por meio da arte. Apresentadas em formato híbrido (virtual e presencial), as peças ‘Luiz Gama: Uma voz pela liberdade’, com Déo Garcez, Soraia Arnoni e direção de Ricardo Torres, e ‘Luiza Mahin… Eu ainda continuo aqui’, com texto de Márcia Santos, idealização de Cyda Moreno e direção de Édio Nunes, são duas obras alinhavadas pela temática da luta antirracista e pelo parentesco dos dois biografados: Luiza Mahin, trazida para o Brasil no século 19 e escravizada, heroína da Revolta dos Malês, e mãe de Luiz Gama (1830-1832), vendido pelo próprio pai como escravo, mas que se tornou escritor e advogado de pessoas escravizadas.

Cyda Moreno e Déo Garcez interpretam Luiza Mahin e Luiz Gama (Foto: Cristina Granato)

Cyda Moreno e Déo Garcez interpretam Luiza Mahin e Luiz Gama (Foto: Cristina Granato)

Os dois são considerados como grandes nomes da luta abolicionista no Brasil do século 19. E o teatro é uma ferramenta sempre para denunciar as atrocidades da História do Brasil. E foi em meio à exibição das peças, no teatro PetraGold, que todos os presentes fizeram uma homenagem póstuma a Kathlen Romeu, jovem grávida de 24 anos assassinada a tiros no último dia 8 em uma incursão policial no Complexo de Lins de Vasconcelos. A responsável pelo tributo silencioso e potente foi a atriz Taís Alves.

Na sequência da apresentação das peças houve uma roda de conversa com o roteirista e escritor Paulo Lins, a atriz Isabel Fillardis, o cineasta Jeferson De e a especialista em história da África Mônica Lima, mediados pela atriz Lica Oliveira. Isabel Fillardis falou sobre a forma com que as duas obras a impactaram: “As histórias me atravessaram de uma forma dilacerante. Comecei a entender que, quando olhamos o passado, começamos a entender qual a nossa missão no planeta”. 

Teatro PetraGold exibiu a sessão dupla das peças ‘Luiz Gama: Uma voz pela liberdade’ e ‘Luiza Mahin… Eu ainda continuo aqui’ (Divulgação)

Teatro PetraGold exibiu a sessão dupla das peças ‘Luiz Gama: Uma voz pela liberdade’ e ‘Luiza Mahin… Eu ainda continuo aqui’ (Divulgação)

A primeira apresentação foi uma jornada pela vida de Luiz Gama, representado por Déo Garcez, um ex-escravo, vendido pelo próprio pai para saldar dívidas de jogo, mas que marcou sua história como poeta, jornalista, advogado autodidata responsável pela defesa de inúmeras pessoas escravizadas no Brasil e que teve papel na luta abolicionista. Já a segunda conta a história de Luiza Mahin (interpretada por Cyda Moreno), heroína mitológica da Revolta dos Malês, o maior levante de escravizados da história do Brasil, em 1835, e mãe de Luiz Gama. Misturando história com realidade, as duas peças denunciam o ciclo vicioso racista da sociedade e o assassinato de corpos negros no Brasil.

Ao final de suas apresentações, Garcez disse estar ‘imensamente feliz em restabelecer o encontro com o público’ e Cyda frisou a importância da arte no contexto atual: Usamos o teatro como ferramenta para poder denunciar essa tragédia contemporânea e atual. Só assim podemos ver a magnitude do encontro de dois personagens negros apagados pela história e cujas vidas estão sendo lembradas em um teatro no Leblon. Isso é um momento histórico”, disse. 

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Durante a roda de conversa mediada por Lica Oliveira com o tema ‘Mãe e filho em um paralelo com o genocídio negro’, Isabel Fillardis reafirmou a importância de trabalhos como as duas peças, que expõem e levam luz à história não conhecida pela maior parte da população brasileira. “O afrofuturismo é exatamente o que estamos fazendo aqui. Olhamos para o nosso passado para ressignificar o presente para que, com o mínimo de dor possível, consigamos mudar a nossa história. Temos que curar e ressignificar nossas feridas”, disse. Ao final de sua fala, Isabel comentou sobre a felicidade de ver um resgate histórico e cultural: “É um prazer imenso ver meus irmãos e colegas fazendo um trabalho lindo em tempos como estes que vivemos. Encarei muitas dores, mas tive a força de continuar, permanecer e resistir ao longo dos meus 43 anos. É hora que entendermos que podemos nos articular, porque a nossa voz é muito maior do que eles pensam. Poderemos mudar o nosso futuro”.

Déo Garcez e Isabel Fillardis (Foto: Cristina Granato)

 

Mônica Lima, especialista em História da África, traz à luz o legado histórico dos personagens que foram esquecidos por tantos e fala sobre a dicotomia entre as narrativas de Luiz Gama e Luiza Mahin: “Essas histórias são, o que eu chamo, os passados-presentes. A escravidão não está lá atrás, em um lugar que a gente não pode lembrar. Ela está aqui, viva. Quando falamos da participação de negras e negros nas lutas abolicionistas, parece genérico, mas quando colocamos os rostos nos personagens, é diferente. A história ganha outras cores e outras forças pelas artes e precisamos cada vez mais ouvir e passar para frente essas narrativas”, afirma. 

Monica Lima: “A escravidão não está lá atrás, em um lugar que a gente não pode lembrar. Elas estão aqui, vivas” (Foto: Cristina Granato)

A atriz Cyda Moreno, que vive na ficção Luiza Mahin, diz que conheceu a história da personagem em 2006 e fala dos impactos da descoberta de Luiza para o movimento negro no Brasil: “O imaginário negro fez dessa mulher um exemplo de heroísmo. Ela é uma das nossas ancestrais que nos dão forças, nos amparam e nos fazem continuar e Luiza quer que contemos a sua história. Queríamos trazer essa memória de forma contundente para o teatro para confrontar a realidade”. Além da mãe de Luiz Gama, a peça traz a perspectiva de mães que perderam os filhos de maneira abrupta e vítimas do racismo na sociedade. Para Cyda, ‘trabalhar com tragédia não é algo que todos tenham interesse, porque coloca o dedo na ferida’. “Antes de virmos para o palco, a gente sofre e reza, porque é muita responsabilidade. Queremos fazer com que a voz dessas mulheres ecoem na sociedade e denunciar esse ciclo vicioso onde cada um morre a cada dia”.

Cyda Moreno: "Queremos fazer com que a voz dessas mulheres ecoem na sociedade e denunciar esse ciclo vicioso onde cada um morre a cada dia” (Foto: Cristina Granato)

Cyda Moreno: “Queremos fazer com que a voz dessas mulheres ecoem na sociedade e denunciar esse ciclo vicioso onde cada um morre a cada dia” (Foto: Cristina Granato)

Vivendo o filho de Luiza, o ator Déo Garcez está em cartaz com a peça há seis anos e enfatizou que é fundamental para a recuperação da história de um herói negro, que foi intencionalmente ‘apagado’: “Por meio do teatro, podemos fazer essa reparação, um ato de resistência. Fazemos uma contextualização das histórias dessas pessoas que se repetem no presente”. Soraia Arnoni, que acompanha Garcez desde as primeiras exibições da obra, fala que construir os personagens é um processo e pode ver o papel que faz se desdobrar em outros corpos, como o de Cyda. Sobre a narrativa crua e intensa em ‘Luiza Mahin…Eu ainda continuo aqui’, Soraia diz que se trata de um reflexo da realidade e faz um alerta sobre a militância da internet: “A peça é violenta, porque o Estado nos trata com violência. Vejo essa história como um legado que nos questiona sobre qual a batalha nós estamos seguindo. Como pessoa, me sinto muito pouco potencializada por ações na internet. Precisamos de ações concretas para fazer com que o genocídio acabe e mude a nossa realidade”, pontua.

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FICHA TÉCNICA

‘Luiz Gama – Uma Voz pela Liberdade’: Dramaturgia: Déo Garcez; Direção, cenografia e figurino: Ricardo Torres; Elenco: Déo Garcez e Soraia Arnoni; Áudio de apresentação (voz): Milton Gonçalves; Produção: MS Events/Mário Seixas e Coprodução: Olhos D’Água Produções.

‘Luiza Mahin… Eu ainda continuo aqui’: Texto: Márcia Santos; Idealização: Cyda Moreno; Direção artística e corporal: Édio Nunes; Direção musical e preparação vocal: Jorge Maya; Elenco: Cyda Moreno, Marcia Santos, Jonathan Fontella, Taís Alves; Atriz convidada: Marcia do Valle; Voz de Luiz Gama: Déo Garcez; Vozes em off: Thelmo Fernandes, Marcelo Escorel e Gedivan de Albuquerque; Cenário e figurinos: Wanderley Gomes; Trilha sonora original: Jorge Maya e Regina Café; Percussão: Regina Café; Desenho de luz: Valdecir Correia; Edição de vídeo: Madara Luiza; Fotografia: Cláudia Ribeiro; Design: Maria Julia Ferreira; Maquiagem: Andreia Jovito; Coordenação de marketing: Naira Fernandes; Apoio de pesquisa histórica: Aline Najara; Direção de produção: Cyda Moreno e Assistente de produção: Marina Silva.