Guida Vianna faz peça sobre indígenas e na TV uma idosa que quer apaixonar-se: “A libido do idoso é diferente”


Cheia de vitalidade, Guida Vianna está em cartaz na peça “Terra Desce”, no elenco do longa-metragem “Fluxo”, que estreou semana passada e em “Família Paraíso”, na Globo/Multishow. Sobre a peça de teatro, a atriz destaca a possibilidade de se dar protagonismo ao indígena, que geralmente não tem lugar de fala nas montagens teatrais. Ela, junto ao Ricardo Kosowski, Além disso revisitam o surgimento do Rio de Janeiro a partir de uma fábula que reconta o surgimento do primeiro mestiço da cidade. A atriz interpreta Rosinha em “Família Paraíso”, série que se passa num lar de idosos, e sua personagem é uma mulher que quer apaixonar-se. Sobre a maturidade aponta: “Eu acho essa discussão de etarismo uma loucura. O corpo envelhece mais cedo que a cabeça, mas tenho o mesmo desejo em viver, de acompanhar a vida e ir para onde a vida esta indo”

*por Vítor Antunes

Fruto de uma geração muito prolífica dos anos 1970, Guida Vianna passou por muitas fases da cena artística assim como outras tantas do Brasil. A contracultura, que visava combater o status quo ditatorial criou uma arte disruptiva e de protesto. Para a atriz o atual momento, ainda que de mais liberdade política está mais careta. “Na pauta dos costumes, voltamos atrás. Houve a ascensão de um obscurantismo político, de um moralismo evangélico e de um fundamentalismo pautado na tríade de Deus-Pátria-Família que fez com que tudo voasse para escanteio”. Às vésperas de completar 70 anos, a atriz celebra a sua escalação para a série “Família Paraíso“, no Multishow, cujo elenco é majoritariamente composto por pessoas mais maduras. Para Guida, sua personagem, Rosinha “é aquela que tem energia, que diz ‘eu quero viver’, eu ‘estou na pista e quero desfrutar a vida’. Acho que só envelhece quem perde a curiosidade de aprender, de ver mundo, de consumir cultura. Essa pessoa vai envelhecer”. Sobre a libido na maturidade, diz que “o desejo muda de lugar, e não é só a libido sexual, mas em sua forma ampla. Tenho desejo pela vida. Adoro ir a uma festa, dançar e tomar uma caipirinha”.

Além deste trabalho, Guida pode ser vista na peça “Terra Desce”, escrita e dirigida por Marco André Nunes e Pedro Kosowski, que trata sobre o nascimento do Rio de Janeiro enquanto cidade originalmente indígena. Inspirada no livro “O Rio Antes do Rio“, de Rafael Freitas da Silva, a peça aborda o Rio de Janeiro ainda como território indígena, anterior à chegada dos portugueses ao solo fluminense. “A peça é baseada numa fábula: A do primeiro registro de união entre um europeu e uma indígena e o nascimento do primeiro carioca, que é um mestiço. Este livro foi descoberto e é baseado no relato de um cronista do século XVI. Fala de mestiçagem, de lugar de fala e do lugar indígena. O Ricardo faz um português e eu faço a criança mestiça, filho deles, num determinado momento da montagem. Entra aí também uma discussão sobre o fato de sendo atriz eu não poder fazer a indígena pois não tenho esse lugar de fala. Mas também por ser atriz, posso fazer homem, mulher, criança. É um espetáculo que também toca em assuntos pertinentes ao lugar do ator”.

Guida Vianna está em “Família Paraíso” e no teatro: protagonismo da maturidade (Foto: Divulgação/TV Globo)

MATURIDADE E VIDA

Os anos 1970 são tidos como de grande liberdade nos costumes. Época onde mesmo com a  grande repressão advinda da ditadura, havia uma grande flexibilização no conhecimento das drogas recreativas, do amor livre, dos métodos contraceptivos. Diante deste quadro, Guida classifica o tempo presente como, ainda que de grande pluralidade política como um retrocesso nos costumes. “Hoje há maior caretice. E aqui, além de tudo, houve o obscurantismo ressaltado pelo governo Bolsonaro. Cresceu o  moralismo evangélico, e o fundamentalismo da direita de Deus-Pátria-Família. Há movimentos progressistas, mas a sociedade se manteve calada nos últimos anos”.

Apesar da Censura havia também um movimento que salvou a cultura. “Foi a contracultura, um rico movimento, da Tropicália, dos poetas alternativos, vanguardistas surgindo naquele momento de criatividade plena, que, mesmo censurada a cultura não deixou de ocupar protagonismo, e sobreviveu nas catacumbas. Havia liberdade mesmo em meio à repressão, no Píer de Ipanema e isso nos ajudou a ultrapassar a ditadura, a resistir, a pedir pela Anistia e pelas Diretas”, relata, e lamenta não haver tanta movimentação jovem hoje.

Guida está em “Família Paraíso”, série do Multishow que dá “Protagonismo à maturidade. Eu adoro a série. Para mim é a hora do recreio. Leandro Hassum e Cacau Protásio têm grande qualidade, eles falam bem com o povo”. Quanto à sua personagem, ela diz ser “uma pessoa que mesmo na maturidade, sendo uma pessoa saudável pode ir à praia, cinema, teatro, concerto. Isso chama-se desejo, tesão de viver de compartilhar e nisso está incluído namorar, ir para o baile e dançar”. Nesta segunda temporada do programa, o integrante mais ranzinza da casa de repouso onde se passa  a trama, Alair (Arthur Kohl) vai encontrar uma namorada que o vai tornar mais brando.

Guida integra o elenco de ‘Família Paraíso’ (Foto: Divulgação/Globo)

A libido do idoso é diferente e isso não quer dizer necessariamente que ele queira sair e ir pro motel. Ele quer encontrar-se e isso já esta bom, maravilhoso, poder passar uma noite incrível, ter esse desejo de viver, de estar pronta, de viajar e ir ao cinema e acompanhar a vida e não trancar-se. Eu acho essa discussão de etarismo uma loucura. O corpo envelhece mais cedo que a cabeça, mas tenho o mesmo desejo em viver, de acompanhar a vida e ir para onde a vida esta indo – Guida Vianna

Nos 70’s repressão e contracultura. Nos tempos atuais, caretice e abertura política (Foto: João Julio)

GUAJUPIÁ

Guajupiá, o sonho de uma terra sem males. Assim os tupinambás sonhavam quando da época em que ocupavam o território hoje pertencente ao Rio de Janeiro. Muitas nações indígenas ocupavam o território fluminense. Pedro Kosowski e Marco André Nunes tiveram acesso, no livro escrito por Rafael Freitas, a um manuscrito, que narra a fábula do primeiro registro de união entre um europeu e uma indígena, ou seja, o nascimento do primeiro carioca “é um relato de um cronista do Século XVI, Antonio Pigafetta, que esteve na expedição de Fernão de Magalhães (1480-1521) durante a volta ao mundo. Os diretores descobriram que Gabriel Garcia Marquez (1927-2014) faz em sua obra um elogio ao Pigafetta e baseia o seu realismo fantástico nos escritos do autor”, relata Guida.

Inicialmente, o projeto que ela e Ricardo montariam seria outro e este em que estão, seria um monólogo. O ator que faria o espetáculo solo não pode fazer – e a peça já havia sido aprovada numa lei de incentivo – bem como o da dupla, uma montagem sobre o período da Anistia, não conseguiu encontrar patrocinadores. Surgiu assim, a ideia de juntar os dois projetos. “A peça”, conta Guida, “é uma espécie de sala de ensaio, uma perspectiva cênica de dois atores que se conhecem há anos e resolvem montar esta fábula”.  Segundo a atriz, a peça fala de “mestiçagem, fundação do Rio, lugar de fala – já que há um personagem indígena que não pode ser interpretado por um ator branco… É um espetáculo que toca em assuntos pertinentes ao lugar do ator”.

Guida Vianna vive vários personagens em “Terra Desce” (Foto: João Julio)

O debate sobre esse assunto, ainda que seja, sob algum aspecto atual, não é novo. “Já há muito tempo os pesquisadores, os cientistas sociais, como Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro e Aílton Krenak e o Índio Raoni, trazem à tona debates afirmativos, mas de dez anos para cá essa discussão ganhou protagonismo. Era uma discussão periférica que rondava a sociedade, mas que não tinha a visibilidade que tem hoje. Além dos atores, há a participação de duas indígenas: Rayna e Julia Tupinambá. A primeira é ativista da causa indígena e contribuiu com o texto

“A História da Fundação da nação brasileira foi sempre contada pelos brancos. Mas é importante que ela seja contada por outras perspectivas, como a negra e indígena. A gente precisa entender que esse País foi fundado majoritariamente por três povos e não apenas o branco europeu. O teatro se propõe a problematizar isso – Guida Vianna

Guida observa que hoje os teatros estão lotados. As pessoas estão ávidas de palco e de vida, segundo ela. “Mesmo as peças que não são tão populares, são alternativas, estão lotadas. É uma felicidade enorme o cinema nacional também revivendo”. A atriz, a propósito, revive a frase de Vicente Pereira (1949-1993) que dizia que envelhecer é olhar a vida sem desejo. Ela relembrou, também, uma conversa que deveria ser frugal com uma amiga, na qual uma disse “eu gosto tanto de viver” e Guida respondeu “Eu também”. Viver é urgente.

Guida Vinna e Ricardo Kosowski (Foto: João Julio)