*por Vitor Antunes
Trabalhando quase ininterruptamente na televisão desde os anos 1970, Flávio Galvão optou por dedicar-se ao teatro em 2023. Até o fim de abril estará na peça “O que faremos com Walter?”, em cartaz na capital paulista no Teatro Opus Frei Caneca. Na montagem dirigida por Jorge Farjalla, um dos debates trazidos à cena é o etarismo, já que o personagem central da peça e que a nomeia, vivido por Elias Andreato, é um velho zelador de um condomínio que está às raias de ser demitido. Flávio quer viajar com esta montagem e produzir uma outra encenação, também para os tablados. Quanto às telinhas, ele diz que quer dar um tempo. “Acabei de fazer “Reis”, da Record e agora quero descansar. Meu currículo tem muitas coisas, mais de 100 trabalhos. Eu não tiro férias há uns 10 anos”.
Galvão, que também é filósofo, se posiciona contrário ao politicamente correto. Não acredita nesta onda de cancelamentos que acabam servindo como “a palmatória do mundo”. De igual forma, não crê ser necessário que os artistas se submetam às redes sociais para fazerem sucesso, já que ele, via de regra, foi uma pessoa discreta quanto sua vida pessoal.
Para ser celebridade, fazer TV para ganhar dinheiro, talvez ir pro BBB seja mais importante que fazer Hamlet. Para mim vale mais fazer Hamlet. As redes sociais não me incomodam, não me chateiam só não me dizem nada – Flávio Galvão
Numa trajetória longeva na teledramaturgia, na qual viveu Deus, o diabo e um anticristo, Galvão se diz uma pessoa de fé, crédula em Jesus, ainda que não se intitule religioso. Para ele, ao dar vida aos personagens como os que viveu, era necessário, principalmente, humanizá-los, justamente por seus tons sobrenaturais. Em “Corpo a Corpo“, de 1984, na qual interpretou o diabo, disse haver conferido a ele ” uma certa nobreza, uma sedução. As mulheres, em especial gostaram muito desse trabalho”, relatou, sobre o charmoso – e demoníaco – Raul. Já nas novelas “Gênesis” e “Reis”, na qual dera voz a Deus, relatara dar a ele o tom de “imagem e semelhança da criação. Tanto que, sorria, zangava, magoava”.
TEMPO E MATURIDADE
Em “O que faremos com Walter?”, uma peça que aborda, como um dos temas centrais, a velhice, Flávio Galvão comenta que o desprezo à maturidade é traço de uma cultura ocidental. “Para os orientais, os sábios são os mais velhos, que são respeitados”, afirma. Todavia, a seu ver, a peça dirigida por Jorge Farjalla não se baseia só no etarismo, por mais que Walter seja dispensado do condomínio onde trabalha há anos, centralmente, em face do seu envelhecimento. “Quando demitem Walter de seu trabalho, não o fazem por não gostar dele, mas pelo poder de fazê-lo. São os pequenos poderes, os pequenos assassinatos. Como [o da crueldade de] dispensar alguém que trabalha para você. E, na idade que for, ninguém pode se dar ao luxo de perder o emprego. A peça aproveita-se de um mote atual, que é o etarismo para dizer outras coisas que transitam pelo sentido humano, corrosivo e político das palavras”, teoriza.
Para Galvão, “todos os personagens são losers, perdedores. Além disto são pessoas que se sentem superiores, ainda que derrotados. Tentam se sobrepujar ao outro pelos meios permitidos. Tem algo meio Bukowski [autor existencialista]. A peça é muito engraçada, e quem assiste, sai de lá refletindo sobre sua postura humana. E o grande barato de fazê-la é de poder agir como um motivador do pensamento alheio”. Formado em Filosofia, o ator tem uma ótica definitiva para o politicamente correto. Para ele, em alguns momentos o politicamente correto tenta ser “a palmatória do mundo”.
Acho o politicamente correto meio chato. Basta ter o mínimo de educação e sensibilidade para não ofender ninguém, com uma fala lacradora sobre alguém que cometeu algum deslize, ou fez uma piada sobre algum tipo de pessoa. Acho isso uma grande bobagem. Somos todos humanos com defeitos, qualidades. Quanto mais vemos as possibilidades de achar seu semelhante parecido e a partir daí ser engraçado, melhor – Flávio Galvão
Ao falar do seu próprio amadurecimento e como observa a passagem do tempo, Flávio, 75 anos, tem uma perspectiva poética que tem algo do filme Benjamin Button. “Nasci maduro e fui regredindo, ficando mais moço, com mais medos. Mesmo com a experiência, não tenho absolutamente nenhuma segurança no meu ofício. Sou inseguro e isso me faz bem. Só depois do terceiro sinal e que dou a primeira palavra é que me sinto seguro. O teatro me transforma e ensina muito e todos os dias. Sempre tem uma coisa nova e isso me fortalece. Por isso vou em frente e gosto muito do que faço. Essa adrenalina é saudável – ainda que eu goste da dopamina também. Os personagens podem fazer tudo e eu aprendo enquanto faço. É quando perco a minha inibição natural”, desabafa.
Fui amadurecendo e rejuvenescendo ao mesmo tempo. Não aparento a idade que tenho. estou bem e é legal isso. Talvez seja algo genético – Flávio Galvão
Além da montagem de “Walter” , Flávio Galvão tem realizado alguns projetos como locutor, verve que sempre o acompanhou, e pretende, para o segundo semestre, viajar com a peça que já está em cartaz, ou produzir uma outra, da qual ainda mantém segredo.
NOS AUTOS, NAS BULAS, NOS DOGMAS
Flávio Galvão, por mais que tenha interpretado muitos papéis durante a vida, teve a chance de experienciar dois registros de personagens diferentes em energia. Foi, em “Corpo a Corpo” (1984), Raul, o diabo. Anos mais tarde, o anticristo Stefano Nicolazzi, na novela “Apocalipse” (2017), da Record. Pouco tempo depois, incorporou a voz de Deus nas novelas “Gênesis”, “Reis” e na série “A Bíblia“. O artista se diz uma “de muita fé. Tenho Deus e Jesus todos os dias, ainda que não seja religioso. Como ator tenho que encontrar soluções viáveis e críveis para que o público possa gostar do trabalho e seja interessante ao espectador. Quando eu fiz o Diabo na Globo eu me inspirei na realeza britânica, usei de roupas italianas, alinhadas, de uma certa nobreza e sedução”. E ele confessa, “as mulheres gostaram muito desse trabalho. Raul era sedutor”.
Em contrapartida, “quando eu faço Deus, penso no princípio de que Ele nos fez a sua imagem e semelhança. Dava o tom, então, como o de alguém que sorria, se magoava com os filhos incrédulos, que procurava se consolar e se enraivecia como presente no Velho Testamento. Pautava, assim, o meu trabalho pelo lado do ser humano com misérias, alegrias e tristezas”. Diz o artista que ser “ator é ter muito sentimento dentro de si. A composição artística só se faz através da profundidade, do detalhamento e da bagagem sobre o que é o personagem”.
Quando eu morrer dirão “morreram Flávio Galvão” – Flávio Galvão
Hoje fala-se muito que os atores deve ter uma quantidade xis de seguidores e uma porcentagem y de gordura corporal para poder ser aceito em sua profissão: Deve ser magro, sarado e engajado nas redes sociais. Algo que Flávio, artista de uma outra geração, acredita ser dispensável. “[Parece-me que] quem se cobra em ter um físico trincado são os atores mesmo. Eu perdi mais tempo lendo que fazendo exercícios. Nunca me senti cobrado não. Tenho cerca de 20 mil seguidores. Não tomo muito conhecimento sobre as redes sociais, que só uso quando faço alguma viagem. Minha última postagem faz cerca de 4 meses. Há quem diga que quem tem menos de 1milhão de seguidores não chega a lugar nenhum. Eu, a contrario, acho que um bom trabalho de ator e com continuidade vale mais possibilidades de trabalho que estar nas redes sociais”.
AS PALAVRAS
Com uma voz grave e marcante, Galvão tem feito muitos trabalhos como locutor, em paralelo ao de ator. Porém, conta-nos ele que até 1970, também fez algumas dublagens. Muitas delas icônicas. “Eu gostava muito de dublar, dublei Steve McQueen (1930-1980) e Marlon Brando (1924 – 2004) , por exemplo, mas até 1970. Depois disso, não mais. A TV e o teatro me absorveram. Dublei cerca de 8 temporadas de “Jeannie é um Gênio“, além do personagem principal da animação “Maguila, o Gorilla“, da Hanna-Barbera.
A primeira novela de Flávio Galvão foi ainda na TV Tupi, a Pioneira. Tratava-se de “Hospital” (1971), e outros projetos na emissora, até mesmo uma das últimas da extinta televisão, “Dinheiro Vivo“. Nesta, deu vida ao seu primeiro vilão, Eduardo. Passou pela TV Cultura onde fez mininovelas educativas até que foi contratado pelo SBT. Na emissora de Silvio Santos, estrelou junto com Ana Rosa e Denis Derkian a primeira trama brasileira produzida e exibida pela emissora, “Destino”. Ainda que se tratasse de uma produção mais modesta, as limitações técnicas da TV não o assustaram, apenas o texto, muito latinizado. “Achei legal fazer a primeira novela do SBT, isso vai ter valor histórico no futuro”.
Dentre os outros trabalhos que destaca nesta emissora também fala sobre “O Grande Pai“, uma série exibida pelo SBT, quando Walter Avancini (1935-2001) era diretor de teledramaturgia daquela TV, e que, segundo Flavio, “chegou a marcar mais de 20 pontos de audiência numa quarta feira, época em que a Globo ainda reinava absoluta”. Agora com as novelas exibidas pelo Globoplay e Canal Viva, ele percebe uma nova abordagem do público. As pessoas estão vendo “Amor com amor se paga“, “A Indomada“… Sempre tem alguma novela no ar. Já estive em quatro horários diferentes, tanto na Globo, como na Record, como pelo Viva. Acho que estava aparecendo mais na tela que o próprio logotipo da Globo”, diverte-se.
Porém, aquela que talvez seja a sua experiência mais peculiar na TV, tenha sido como comentarista político do Jornal da Cultura, da TV educativa paulistana, entre 2016 e 2017. Além do noticioso, também compôs, pontualmente, a bancada do inoxidável “Roda Viva“. ” [Como comentarista] Eu me coloco na posição do espectador. Falar de futebol ou teatro é mais confortável. Eu leio muito e foi uma experiência boa. Tento falar coisas pertinentes, com alguma humildade. Sinto saudade dos amigos que deixei lá quando fui fazer novela no Rio”. Inclusive, no próximo domingo, o ator estará de volta às telas da Cultura. Será o convidado do programa “Persona”, que revisitará a sua carreira.
Presente na televisão desde a época da TV em preto e branco, o ator passou por ela todas as suas fases: Do seletor ao controle remoto. Da antena ao stream. Segundo ele, o futuro da TV aberta será com mais segmentação. “A televisão pública e gratuita vai ter que se acomodar aos nichos de publico. O veículo está cada vez mais distante do povo por causa do streaming. Eu mesmo vejo apenas os jornais e o primeiro capítulo de alguma novela. Mas creio que estamos ainda patinando, procurando por que caminho ela irá percorrer. Eu não gosto muito de ter certezas. É bom não saber por onde vai e ir pelo melhor caminho possível”, conclui.
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