*Por Brunna Condini
Fernanda Nobre sempre assumiu com total liberdade a opção de um casamento não-monogâmico com o diretor José Roberto Jardim. E mais: entre outras reflexões corajosas e libertárias costuma analisar os conceitos que visam o controle da liberdade feminina, construídos ao redor dos relacionamentos em nossa sociedade. E, agora, nos conta que temas como a vivência do casal em um relacionamento aberto e os aprendizados que ela vem compartilhando nas redes sociais sobre liberdade sexual, feminina e escolhas, vão virar um espetáculo teatral.
“Tanto eu, quanto o Zé, vemos nossa existência como uma expressão artística. Então, as nossas experiências também são formas de ser na arte, mas fora essa questão, que é um papo mais filosófico, tem um texto que está sendo escrito para mim pela Louise Belmonte sobre isso tudo. O Zé vai dirigir e colocaremos, de alguma maneira, um documentário ficcional, da nossa vida ali. Uma metalinguagem dele me dirigindo e a gente falando sobre nós”, anuncia a atriz, que, além de ‘Um Lugar ao Sol‘, a próxima novela das 21h na Globo, também poderá ser vista no streaming: “Acabei de filmar uma série para Disney +. É muito dentro de tudo o que acredito, Vem reforçar essa artista que sou e quero ser”.
Estreando agora
Apesar de ressaltar as dificuldades de ser artista em nosso país e de levantar patrocinadores, Fernanda se prepara para matar a saudade dos palcos por agora, em outro projeto que já estava sendo tocado antes da pandemia. Na quinta-feira, ela estreou ‘A Desumanização‘, no Centro Cultural Banco do Brasil, no Centro do Rio. O texto do escritor português Valter Hugo Mãe, em adaptação inédita dirigida por José Roberto Jardim, será encenado pela atriz e por Maria Helena Chira – elas fazem a mesma personagem – para abordar temas como a perda e a passagem da infância para a juventude, através da história de irmãs gêmeas: uma delas morre criança e a outra tem que amadurecer sem ‘sua metade’ e melhor amiga, em uma cidade onde o conservadorismo e os preconceitos dominam.
“Este texto nunca teve tanta relevância como neste momento que vivemos. A personagem tem que aprender a amadurecer e continuar sem sua irmã. Nesse rito de passagem, ela se depara com situações que a fazem rever a relação com a família e moradores naquela cidade opressiva. E cada dia me cai mais fichas sobre o que estamos dizendo. A Islândia do texto é o nosso Brasil, intolerante e preconceituoso, que conta hoje com mais de 570 mil mortos pela Covid-19. São pessoas que sabem o que é viver sem alguém que era a sua identidade no mundo”.
E lamenta: “Tive perdas para a Covid. Meu tio morreu logo no início disso tudo, foi assustador. Tivemos notícias da pandemia dia 15 e ele morreu 17 de março de 2020. Perdi também uma madrinha, meses depois, alguém que foi muito presente na minha vida. Então, minha família teve que conviver com duas mortes muito próximas”, recorda. “A morte por esse vírus tem essa característica da ruptura muito brusca. Minha tia, parceira do meu tio de tantos anos, não conseguiu se despedir dele. E é tão importante esse ritual, deve ficar uma lacuna, um espaço vazio. É muito difícil”.
Feminista, de espírito e exercício, Fernanda também relaciona a questão da liberdade sexual abordada no espetáculo, com o tabu sobre o tema ainda hoje. “A personagem é uma menina que vivencia a perda da irmã numa cidade muito pequena, um lugar extremamente moralista. E teve a sexualidade reprimida, foi marginalizada por essa sociedade. E nós, aqui no Brasil, estamos moralistas, passamos por essa onda conservadora muito forte. Por outro lado, tem também uma onda libertadora que está tomando potência. Não poderia estar falando isso, se não tivesse essa liberdade, esse despertar, mas temos que continuar atentos a tudo que está acontecendo no país”.
E analisa: “Algo extremamente perigoso quando pensamos nesta onda conservadora é a educação sexual, por exemplo. Como pode alguém acreditar que educação sexual é sobre sexualizar a criança? Na verdade, é sobre proteger a criança. Do abuso, assédio, estupro, que acontecem na maioria das vezes dentro de casa, através de pessoas que deveriam acolher, dar segurança. Como podemos viver num país que está tentando tirar essa educação das escolas? Que está tentando proibir as crianças de conhecerem seus corpos, saberem os nomes dos seus órgãos? Isso não consigo conceber. É urgente combater isso com informação”.
Em nome da escolha
Fernanda fala ainda, a respeito da repercussão que teve sua conversa aberta, sobre a liberdade de se relacionar entre duas pessoas que se gostam. “Fico orgulhosa de estar levantando essas questões, de poder ser uma voz atuante nesta quarta onda feminista. É o que estudo, acredito, tudo que falo é política. É uma forma de informar e despertar mulheres, porque outras vieram antes e fizeram isso comigo. Estou tendo a oportunidade de ser atuante neste momento que é único, de quebra de padrões muito enraizados. Estamos em uma profunda mudança de comportamento social e se não fizemos nossa parte, isso pode desandar. Levo isso muito a sério e ainda tenho muito para aprender. Não é algo que faça para me divertir, mas para me tornar uma pessoa melhor”.
Ela destaca o conceito de que as relações monogâmicas são culturalmente construídas e que algumas vezes o amor idealizado romanticamente pode ser uma ferramenta de manipulação: “Minha motivação é política, por liberdade. Acho importante as mulheres terem a mesma liberdade de escolha que os homens. E quando falo, por exemplo, da maternidade não ser algo compulsório, como tem sido na nossa sociedade, é sobre escolhas também. Não sei se quero ser mãe ou não, tanto que congelei meus óvulos. Pode ser que ainda queira, que engravide daqui a três meses. Mas quero poder dizer para as mulheres que elas podem escolher não ter, não serão menores por isso. E se quiserem, tenham, mas que seja uma escolha de fato”.
Ainda existe muito tabu, críticas em relação à liberdade sexual alheia. Muita gente acha que se trata de promiscuidade, falta de respeito na relação…o que diria para essas pessoas? “Primeiro eu diria que é difícil entender mesmo, porque temos conceitos moralistas e preconceituosos muito enraizados. Só que na verdade, todo esse conceito de promiscuidade, ciúmes, posse, está dentro de um lugar de controle social. O que é promiscuidade? Esse conceito foi criado para controlar sexualmente pessoas. O que é ser vulgar? Quem diz o que é isso? Provavelmente homens criaram o conceito, para controlar o comportamento de mulheres livres. Essas referências estão todas dentro do mesmo pacote e você está reafirmando e tentando aprisionar outras pessoas e a si mesmo, quando valida isso”.
A atriz frisa que toda relação é regida por códigos e que a sua não é diferente. Fernanda também reconhece que essa ‘desconstrução’ não é algo simples: “Estou no processo. Ainda não cheguei nesse lugar de não sentir ciúmes, por exemplo. Estou me exercitando para chegar no lugar que desejo estar como pessoa. Me libertando desses conceitos que estão entranhados em mim e no meu DNA. Claro que hoje está mais fácil do que era há três anos, mas ainda existe medo, insegurança, só que hoje sei da onde vem. E vem porque é uma forma de controle. Quero ter a liberdade que o outro tem, que meu parceiro tem, só por ele ser homem. Só por ele ser homem já é mais livre do que eu, entende? Me considero muito mais feliz, satisfeita com a minha existência hoje. E na minha relação também. Parece muito contraditório, mas quanto mais liberdade você dá, mais segurança você tem. Vivo um relacionamento muito melhor”.
Saudade e inspiração
Quando a escritora e atriz Fernanda Young, de 49 anos, morreu na madrugada de 25 de agosto de 2020, em Minas Gerais, ela estava prestes a estrear o espetáculo ‘Ainda Nada de Novo‘, ao lado de Fernanda Nobre. E para além da saudade que sente da roteirista, a atriz conta que Young foi muito importante no seu processo de reconhecer a própria potência. “A Fernanda foi a pessoa mais livre que conheci. Mais conectada com ela mesma e livre mesmo, para ser o que desejasse e falar o que pensasse. Ela me ensinou isso. A não ter vergonha e admirar quem sou. E falar isso para o mundo sem medo do que os outros vão dizer. Fernanda foi muito importante neste meu processo, muito inspiradora”, revela. “Tivemos uma conexão grande de amizade, a admiração que ela tinha por mim, foi tudo muito forte. Peguei isso como uma alavanca, um impulsionador. Porque uma mulher como ela ter se conectado comigo dessa maneira, tão forte, com tanta admiração mútua, me estimulou para a vida”.
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