Giro rápido no noticiário dos últimos dias: Fernanda Montenegro atribuiu o fracasso de “Babilônia” ao “racismo entranhado na sociedade” – pela quantidade de negros no elenco -; “Wildest dreams”, mais recente clipe de Taylor Swift foi acusado de racismo; e os pais de alunos de uma escola do interior paulistano, que foi repreendida por incluir no currículo uma disciplina sobre a cultura dos negros, protestaram pela mudança do nome da instituição. Os acontecimentos poderiam ser apenas recorrências de mais um mal da nossa sociedade, salvo o fato do racismo ser crime no Brasil desde os idos da década de 80. Mas esse cenário, desanimador para muitos, não tira as esperanças de Aílton Graça, ator, negro, 50 anos. “Tem de haver luz no fim do túnel. Se não houver esperança e amor, não há crenças. Acredito que a cultura e a educação são a chave de um avanço contra o preconceito, a intolerância, a ignorância e a falta de escuta”, disse em entrevista ao HT.
E são exatamente as disparidades, os pré-conceitos e a convivência com o diferente que norteiam o atual trabalho de Aílton na ribalta. Junto de Marcello Airoldi, Eliana Guttman, Bruna Miglioranza, Livia La Gatto, Ricardo Ripa e Fernando Oliveira, Aílton vai estrear “Intocáveis” no dia 11 de setembro no Theatro Net Rio, em Copacabana. Com adaptação de José Rubens Siqueira e direção de Iacov Hillel, a peça é situada em Paris, na casa de Philippe (Marcello Airoldi), um homem rico e tetraplégico, resultado de uma queda de parapente. Carente de funcionários para sobreviver, ele contrata o africano Driss (Ailton Graça), que não tem qualificação, vem de um bairro perigoso, de um passado duvidoso, mergulhado na vida com todas as dificuldades. A ideia é mostrar ao público acreditar que estamos nessa vida para sermos felizes, independentemente das adversidades. Nada muito diferente, Aílton adianta, do filme homônimo dos diretores Olivier Nakache e Éric Toledano, que se tornou o filme francês de maior bilheteria fora do país.
“É um texto muito rico e que há uma gama de discussões. Se você olhar pelo conflito do rico e do pobre, do negro e do branco, tudo isso está contido na peça. Numa época de tanta intolerância e tantos olhares tortos para as diferenças acho essencial um texto que fale sobre isso e principalmente que fale sobre amizade e sobre solidariedade”, disse Aílton, que não vê “Intocáveis” apenas como um tapa com luva de pelica na sociedade: “Creio que transcende um pouco”. O que também sobrepuja para o ator é a questão educacional, uma espécie de cerne para a solução – se é que ela existe. “Ninguém nasce preconceituoso ou intolerante. Isso decorre de uma falta de educação, de valores, de princípios e de diálogos ao longo da formação do ser. Acho que se precisa rever a educação como um todo”, opinou indo além do racismo. “As pessoas precisam parar de julgar os outros por sua orientação sexual, credo e cor”.
E a prova que a gente precisa acreditar num mundo melhor está em um grato momento que Aílton viveu há algumas semanas. “Gravei uma reportagem para o ‘Fantástico’ (TV Globo) em que me encontrava com um deficiente visual e ele gostava de mim sem saber como eu era de fato. O que contava era a admiração pelo meu trabalho independente da minha aparência, cor e condição social”, contou. Mas a gente bem sabe que existem muitos Driss – seu personagem na peça – por aí, que vieram de bairros humildes, são negros, não tiveram chance de sentar no banco de uma universidade e, por isso, são rejeitados de empregos. Por isso, o que falta para termos mais Philippes – personagem de Marcello Airoldi – que vai na contramão disso e tudo e o contrata? “Acho que falta generosidade e o querer se encontrar no outro para que a solidariedade possa acontecer de verdade. A polaridade das diferenças nos aproxima”.
Falando em solidariedade, o sistema de cotas nas universidades também esbarra nesse fator. Ou melhor: na falta dele. Quem critica o sistema costuma se justificar no fato de que o negro aceitando um sistema diferente para acesso a um curso, ele está se autoexcluindo, mostrando que ele precisa de uma ajuda para aquilo. A resposta de Aílton Graça para essa parcela da sociedade? “A questão da cota não é uma ajuda e sim uma dívida da nação com meu povo e que precisa ser reparada urgentemente. As diferentes oportunidades dadas ao povo negro falam por si só, haja visto a questão do emprego, salário e discriminação”. Polêmicas à parte, Aílton já foi confirmado no papel de Mussum no filme sobre o eterno trapalhão. Ao HT, ele contou que ainda não colocou a mão na massa.
“Pretendo me preparar com muito cuidado, com muito respeito, dedicação e pesquisa. Fico feliz em ver o olhar do cinema se voltando para essas personalidades negras que nos são valiosas. Espero que hajam mais olhares como esses para Luis Gama, Candeia, Ruth de Souza, Grande Otelo, Dona Ivone Lara e tantos outros”, esperançou. Ainda descansado da TV depois de entrevistar o travesti Xana de “Império”, Aílton se sentiu especial vivendo o personagem. O motivo? “A sociedade em que vivemos é excludente com relação ao travesti. Em termos de políticas públicas, os avanços estão a passos lentos e é preciso perseverar e uma boa dose de esperança para que todas as diferenças sejam vistas ao invés de julgadas e sentenciadas. Viver Xana me fez transitar e viver diversos preconceitos: o negro, o gordo, o travesti, e que por isso não tinha o direito de ter uma família. É isso é muito, muito cruel”, finalizou, cheio de razão. Aliás, do início ao fim.
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