Depois de um bem-sucedida estada no Teatro Cândido Mendes entre 2014 e 2015, ‘Acabou o Pó’ iniciou uma nova temporada no Teatro Dulcina, no Rio. A peça faz um recorte bem-humorado do cotidiano de Nena e Kelly, duas vizinhas e confidentes, típicas donas de casa do subúrbio, resgatando o besteirol carioca dos anos 80. Em conversa com o site HT, Daniel Porto, responsável pelo texto e realização do espetáculo, contou mais sobre os desafios de se arriscar no teatro em um contexto de desvalorização.
Em meio a assuntos tensos e momentos conturbados, Acabou o Pó surgiu da ânsia de fugir um pouco dessas tantas complicações. Em 2014, logo após estrear no teatro com a peça ‘O Pastor‘, Daniel sentiu essa necessidade e investiu no inicio do projeto. “Eu queria fazer algo que fosse apenas um bom entretenimento, mas sem deixar de lado o olhar crítico. O intuito dela, então, é fazer rir mesmo, trazer felicidade para os que estão assistindo. Foi uma válvula de escape depois do texto tão denso de O Pastor”, explicou ele, que não imaginava que anos mais tarde, o ‘fazer rir’ se tornaria ainda mais oportuno.
Assim, com o desejo de levar felicidade, Daniel criou duas personagens cotidianas, que tiram gargalhadas de qualquer um. Entre um café e outro, essas mulheres não deixam nada escapar na convivência hilariante na qual desfiam seu veneno cômico, seus planos para o futuro e muito disse-me-disse. Tem fofoca de ex-marido, tem criança perdida na creche e até o carro do ovo passa em ‘Acabou o Pó’, que fica em cartaz até 28 de janeiro. Para complementar a comédia, o dramaturgo investiu ainda em um diferencial nas personagens: elas são interpretadas por dois homens. “Deslocar o gênero é uma provocação que tira a gente da zona de conforto. Eu acredito que isso potencializa o discurso, sabe? Gosto dessa ideia do recorte e da observação, da transposição do discurso, que dessa forma é realçado. Ele acaba ganhando mais significado por não sair da boca de quem se espera”, afirmou.
Com essa missão de sair do lugar comum, os atores Anderson Cunha e Celso Andre interpretam caracterizados respectivamente Nena e Kelly. Na primeira temporada, porém, não houve a caracterização dos atores, que deram vida às personagens sem nenhum resquício físico do que é considerado feminino. “Fiz uma pesquisa da linguagem de comédia e optei por essa caracterização agora para facilitar o reconhecimento do espetáculo como comédia mesmo. Não quis mais levar para outro lugar e tornar dúbio, entende?”, revelou o dramaturgo, que se inspirou muito nos códigos utilizados no humor argentino. A nova temporada da peça conta ainda com a direção do talentoso Daniel Dias da Silva.
Ainda que tenha o bom-humor presente em todas as falas e no recente projeto, engana-se quem pensa que Daniel Porto não está percebendo a triste desvalorização da arte como um todo. Apesar dos poucos 26 anos, o jovem não titubeia ao opinar sobre a situação e seus precedentes: “A gente escuta alguns discursos de políticos dizendo que um sorriso e um aplauso valem para nós, mas não é assim. Nós deixamos de pensar o teatro como uma empresa, mas o ingresso precisa valer dinheiro para sustentar uma peça e fazer o capital girar. O nosso futuro é pessimista e sombrio e por isso, precisamos voltar e pensar a arte como economia também, porque assim poderemos viver dela”. E prosseguiu fazendo uma interessante comparação: “Você abre um restaurante e precisa que as pessoas comam para que o dinheiro seja movimentado e o seu restaurante continue aberto. No teatro é a mesma coisa, você precisa que as pessoas paguem o ingresso para que a economia criativa funcione”.
Trazendo para uma experiência pessoal, ele revelou que essa desvalorização afetou também o seu atual projeto teatral: “Eu fiz ‘Acabou o Pó’ com um dinheiro que saiu 100% do meu bolso. Se dependermos do auxílio do governo, a gente simplesmente não cria mais e eu não pretendo parar. A arte é transformadora sim, é essencial, mas ela precisa ser reconhecida como um ofício. Apesar de nós não batermos ponto, nossa rotina de trabalho às vezes dura 16 horas por dia. Precisamos ter um pouco de cuidado e parar de enxergar a arte como filantropia”. Para ele, o que falta para que os variados ramos artísticos ganhem a visibilidade e a atenção que merecem é a educação. “No ensino infantil, a arte está presente em tudo e depois ela vai se perdendo. Se conseguirmos enxergar a continuidade da arte na educação, conseguiremos entender os nossos lugares enquanto artistas”, pontuou.
Hoje, aos 26 anos, com mais de dez peças interpretadas e muita opinião sobre o meio em que vive, Daniel se prepara dia após dia para continuar a construir sua carreira. Sem querer fazer metas ou planos para 2019, ele afirmou que se não conseguir realizar as três peças que deseja ainda esse ano, estará tudo bem: “Eu acredito que os projetos têm vida própria e tempo de nascer. Eu tenho objetivos e não sofro se eles não forem cumpridos logo”. E finalizou: “Acho que eu nunca vou ser realizado, porque na hora que isso acontecer, eu não vou mais querer produzir. A minha angústia me movimenta, a minha inquietude é o meu combustível para continuar sendo um artista”.
SERVIÇO:
Sinopse: Comédia teatral que faz um recorte da vida de Nena (Anderson Cunha) e Kelly (Celso Andre), vizinhas e confidentes, que entre um café e outro falam de tudo e todos e se metem em mil e uma confusões.
Local: Teatro Dulcina – Rua Alcindo Guanabara, 17, Cinelândia, Centro.
Telefone da bilheteria: (21) 2240-4879
Dias e horário: Domingos e segundas, sempre às 19h
Temporada: de 6 a 28 de janeiro
Ingressos: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia)
Duração: 1 hora
Ocupação: 429 lugares
Classificação etária: 12 anos
Artigos relacionados