*Por Alexei Waichenberg
“É pelo trabalho que a mulher vem diminuindo a distância que a separava do homem. Somente o trabalho poderá garantir-lhe uma independência concreta”. Trinta e cinco anos depois de sua morte, a frase da filósofa e escritora francesa Simone de Beauvoir (1908-1986) ainda ecoa no pensamento da sociedade contemporânea. Beauvoir foi um ícone do pensamento feminista e existencialista no século passado. Quando falamos, porém, na sétima arte, parece que o reconhecimento vem sendo alcançado com extrema luta. O cinema é arte, é indústria, mas independente de quem o consome, até pouco tempo, esteve atrelado ao universo masculino. Roteiro, produção, direção, atuação, fotografia, sempre encontraram protagonismo nos homens, deixando às mulheres papéis de meras coadjuvantes. Claro, que encontramos na história, desde o surgimento do cinema no fim do século XIX, algumas desbravadoras importantes, como Alice Guy-Blaché, Agnés Varda, Sofia Coppola e as brasileiras Helena Solberg e Adélia Sampaio. Cá nos trópicos, Solberg foi a Dama do Cinema Novo e Adélia, a primeira negra a dirigir um longa no Brasil.
Nossas lentes ajustam melhor o foco quando, com imensa alegria, recebemos notícias frescas do badalado e importante Festival de Cannes, que acontece agora na primeira quinzena de julho. É que o filme “Medusa”, que reúne mulheres nos postos mais destacados da produção, foi selecionado para a Quinzena de Realizadores de Cannes e chegou para melhorar a estatística desigual que apontava, ainda em 2017, segundo a Ancine, números estarrecedores, que mostravam que, naquela altura, em torno de 80% dos produtos de audiovisual brasileiros, eram essencialmente pilotados por homens.
A falta de profissionais mulheres por trás das câmeras encontra um alento animador na obra roteirizada e dirigida por Anita Rocha da Silveira, com produção de Vania Catani, da Bananeira Filmes e coprodução de Fernanda Thurann, da Brisa Filmes.
Cannes não é novidade para a diretora e roteirista, que já havia emplacado em 2012 um de seus curta-metragens. Aliás, não lhe faltam prêmios como os alcançados por suas produções em Festivais como o de Veneza, Havana, Munique, Lisboa, Rio e Recife, além de outros, mas “Medusa”, segundo longa-metragem de Annita, recebeu o valioso reforço de Vania e Fernanda e sua produtoras, que também já fizeram história na realização de filmes brasileiros importantes.
Com o devido cuidado para não dar spoiler, ofereço-lhes como aperitivo a sinopse de “Medusa”: Há muitos e muitos anos, a bela Medusa foi severamente punida por Atena, a deusa virgem, por não ser mais pura. Hoje, a jovem Mariana pertence a um mundo onde deve se esforçar ao máximo para manter a aparência de que é uma mulher perfeita. Para não caírem em tentação, ela e suas amigas se esforçam ao máximo para controlar tudo e todas à sua volta. Porém, há de chegar o dia em que a vontade de gritar será mais forte.
O tema surgiu para Anita em 2015, quando ela deparou-se com uma série de notícias de jornais sobre ataques violentos à garotas adolescentes, realizados por outras jovens mulheres. Assim nasce Mariana, a jovem protagonista que é cúmplice dessa violência e, ao mesmo tempo, vítima.
Eu conversei com essas superpoderosas, que acabam de chegar à França para a exibição no Palais des Festivals et des Congrès de Cannes, no dia 12 de julho, e que nos enchem de orgulho:
– Anita, por que essa associação com o mito de Medusa?
– A associação foi instantânea para mim. Na versão mais conhecida do mito, Medusa era uma linda donzela, mas um dia cedeu às investidas de Poseidon, enfurecendo Atena, a Deusa virgem, que transformou seu cabelo em serpentes, e deixou seu rosto tão horrível, que uma mera visão transformaria os que a olhassem em pedra. Medusa foi punida por sua sexualidade, por desejar, por não ser pura.
Da junção entre mito e realidade me ocorreu que, mesmo com o passar dos séculos, faz parte da construção da nossa civilização as mulheres tentarem controlar umas às outras. Afinal, crescemos com medo de ceder aos nossos impulsos, de não ter o corpo “padrão” e até de sermos consideradas “histéricas”.
Constatei, através das notícias que li naquele 2015, que as mulheres atacavam suas vítimas em grupo, na maior parte dos casos por considerarem-na promíscua e marcavam-lhe a face com cortes para deixarem-na feia.
– Fernanda, você que recentemente recebeu pela Brisa Filmes, prêmios pelas realizações dos filmes “Rogéria” e “Cabrito”, como é chegar a Cannes com “Medusa”, cercada de outras mulheres, profissionais admiráveis, como Anita e Vânia?
– Estar em Cannes, um dos mais importantes festivais do mundo, como coprodutora do filme “Medusa”, é mais do que uma realização pessoal/profissional…é uma vitória do feminino, uma realização do Brasil, nesse momento em que a cultura sofre tanto. É a vitória do nosso cinema, da nossa cultura, encabeçada por mulheres, com um filme roteirizado e dirigido por uma mulher, produzido por mulheres que expõe o universo feminino e as consequências devastadoras, que ainda hoje nos afetam profundamente.
– Vânia, a tirar pelo mito de Medusa e sabendo que o superpoder da produtora de cinema é manter a calma e dar conta de um resultado que garanta a vocação do filme, foi difícil dividir o set com outras mulheres igualmente fortes?
– É sempre agregador dividir o set com mulheres tão sensíveis, competentes e, ao mesmo tempo, tão fortes. Portanto, só enriquece o esforço da equipe e garante o sucesso da produção.
Para terminar, deixo outra pérola de Beauvoir:
“No dia em que for possível à mulher o amor não em sua fraqueza, mas em sua força, não para escapar de si mesma, mas para se encontrar, não para se abater, mas para se afirmar, naquele dia, o amor se voltará para ela, assim como para o homem, a fonte de vida e não de perigo mortal. Enquanto isso, o amor representa, em sua forma mais tocante, a maldição que confina a mulher em seu universo feminino, mulher mutilada, insuficiente em si mesma”.
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