Depois de dois anos, o fim do hiato. A partir do dia 31 de março – e até 29 de maio -, Dani Barros poderá ser vista novamente na pele da catadora de lixo Estamira, desta vez no Teatro Poeira, em Botafogo, Zona Sul do Rio. “Depois de 200 apresentações, turnês por várias cidades do Brasil e duas cidades na Europa, decidi parar um pouco para fazer duas novelas, ‘Império’ e ‘Além do Tempo’“, explica. Criada pela atriz e diretora Beatriz Sayad, a peça inspirada no filme homônimo de Marcos Prado retrata a história de Estamira – a profetisa do lixão, doente mental crônica, que tem um discurso bem diferente do que você imagina para uma mulher que vive à margem da sociedade. “‘Estamira‘ é uma peça que quero fazer a vida toda. Construímos esse monólogo com a ideia de que ele acompanharia minha vida e minha carreira, então parar e voltar, transformada, transforma também a peça. E nesse momento é impressionante notar como a fala da Estamira se ressignifica, é mais atual do que nunca, faz mais e mais sentido, parece falar direto com o Brasil”. Os motivos ficam mais claros durante a conversa exclusiva com HT. Só descer.
HT: O material de divulgação da peça diz: “É também um depoimento pessoal e artístico de Dani Barros, que reconheceu ali parte da sua experiência pessoal”. O que e como foi esse reconhecimento? A que ou quais experiências pessoais se refere?
DB: Quando eu vi Estamira entendi que muitas coisas que estavam engasgadas na minha garganta e que eu tinha vontade de dizer e não sabia como estavam ali. Passei a vida acompanhando minha mãe, os tratamentos que ela fazia, suas idas e vindas a clínicas psiquiátricas. Essa experiência me formou, e como você pode imaginar, toda a complexidade e precariedade do sistema de saúde mental foi tema da minha infância, adolescência e me acompanha até hoje. Entendemos que para poder levar a fala da Estamira tão exposta e tão escancaradas para o palco tínhamos que arregaçar e escancarar também, foi um jeito de me colocar ao lado dela, foi uma porta de entrada para me apropriar do discurso dela e me confundir com ele.
HT: O que você tem de Estamira?
DB: Tenho muito da Estamira, sobretudo uma paixão e uma admiração por ela imensas, e apesar de toda ira, de toda indignação que o espetáculo traz, tem muito amor, tem transcendência…
HT: A Estamira não concorda com a vida e não admite as ocorrências que tem existido contra “seres sanguíneos” e respectivas humilhações. Ou seja, é só observar nossa realidade e perceber que ela é uma crítica do nosso Brasil. Você, como porta-voz dessa personagem, como avalia a nossa situação onde paira a corrupção, o desemprego e os crimes de ódio?
DB: Acho que você mesmo faz essa ponte, não sei se a gente precisa explicar tudo, já está dito. O olhar da Estamira é cirúrgico, ela vê o raio X do poder, o Esperto ao contrário, os copiadores… a ganância, a ganância, a ganância… é um glossário extremamente pertinente que ela cria e que cabe direitinho no nosso sistema. A Estamira é “da verdade, a doa a quem doer…” preciso falar mais? Minha vontade é convidar todas as pessoas para virem assistir e tirarem suas conclusões.
HT: Os habitantes dos lixões são o reflexo de uma incúria social, reflexo da falta de oportunidades, da democracia e da assistência por parte do poder público – e também da vista grossa dos pares civis. De quem é a real culpa dessa triste realidade? Você vê luz no fim do túnel para essa marginalidade social?
DB: Sempre vejo luz no fim do túnel… De quem é a culpa? “A culpa é do hipócrita, mentiroso, que joga a pedra e esconde a mão” diria Estamira… A culpa é de quem não se mexe, a culpa é a estagnação… Não dá para se conformar, tudo menos a conformidade, “não vai ter golpe!”.
HT: Gostaria que você comentasse a seguinte afirmação do próprio programa do espetáculo: “O lixão é a representação irônica e trágica da própria condição em que vive a nossa sociedade”.
DB: Como eu te disse, fiz Estamira pois não dava para não fazer. Foi a chance de desentalar a garganta. No olho do furacão tem um lugar estável, que acompanha, tem um ponto fixo dentro do qual é possível permanecer dentro do caos. Vivemos num país de contrastes sociais chocantes. Vivemos também num país de proporções imensas, com uma diversidade também imensa de problemas e necessidades.
HT: O teatro, como representação de uma arte nobre, é para isso? Para colocar dedos nas feridas, alertar, provocar reflexão? A arte deve ser usada como transformadora social?
DB: O teatro pode ser muitas coisas. Mas acho que esse teatro que buscamos quer, sim, colocar dedos nas feridas, quer falar pois calar dói muito, e o nossa voz no mundo é essa, é o palco, são as obras que criamos. Eu e Beatriz, que dirige a peça, trabalhamos anos como palhaças nos Doutores da Alegria em hospitais públicos do Rio. Era maravilhoso e terrível. Fizemos um espetáculo, Inventário, pois era o nosso jeito de falar dessa experiência, de agir, de não calar, de não esquecer. Estamira idem. Transformar a sociedade é um termo amplo e pode parecer uma tarefa impossível. Mas falar, não calar, lembrar, criar espaços de diálogo, recuperar vozes importantes para que não sucumbam, desorganizar, mover-se… isso está ao nosso alcance…gritar, gritar!!
Serviço
“Estamira – Beira do Mundo”
Temporada de 31 de março a 29 de maio
Quinta a sábado, às 21h
Domingos, às 19h
Endereço: R. São João Batista, 104 – Botafogo – Teatro Poeira
Informações: (21) 2537-8053
Capacidade: 162 lugares
Valores: QUINTAS E SEXTAS: R$ 50 (inteira) | R$ 25 (meia) e SÁBADO E DOMINGOS: R$ 70 (inteira) | R$35 (meia)
Classificação indicativa: 12 anos
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