Dívida de R$ 25 milhões: classe artística do Rio se une para lutar pelo pagamento do fomento de mais de 200 produções culturais na cidade em 2016


No ano passado, o prefeito Eduardo Paes contemplou 214 produções artísticas com um edital cultural que, com a mudança na gestão e a situação econômica do município, não foi pago aos profissionais da área. Ao todo, mais de mil pequenos e médios produtores estão sem receber o acordado em 2016. “O governo deu um calote nos artistas”, disse Adriana Schneider, uma das integrantes do grupo “Movimentos pela Cultura – RJ”

Dívida de R$ 25 milhões: classe artística do Rio se une para lutar pelo pagamento do fomento de mais de 200 produções culturais na cidade em 2016

“Investir em cultura não é caridade, é uma parceria que ajuda a proteger o Brasil internacionalmente”. A frase dita por Fernanda Montenegro, ícone das artes brasileiras, não é de hoje, mas é a tradução do atual momento. Em um panorama de crises a níveis municipais, estaduais e nacional, tudo parece resultar em um mesmo ponto: a desvalorização ou o não reconhecimento da cultura para a sociedade. No Rio de Janeiro, o caso é ainda mais grave. Por aqui, já contamos sobre a crise que se instaurou na cidade por causa do não pagamento do fomento no valor de R$ 25 milhões assinado em 2016 pelo ex-prefeito Eduardo Paes a projetos artísticos no Rio. Pois bem, por causa do não cumprimento deste edital, profissionais da cultura carioca estão juntando forças para lutar pelos seus direitos frente às entidades responsáveis.

Entre as organizações que estão engajadas nesta causa está o “Movimentos pela Cultura – RJ”. Com liderança horizontal e participação de profissionais de diversas áreas da classe artística carioca, o grupo luta pelo pagamento deste edital que, em 2016, beneficiou, em tese, dezenas de projetos na cidade. No total, são 214 produções culturais e mais de mil pessoas envolvidas neste documento que, por causa da troca do mandato e da atual crise econômica no município e no estado do Rio de Janeiro, estão sem receber o valor acordado por seus projetos artísticos. Para entender as reivindicações, as ações e os bastidores desta situação, o HT conversou com Adriana Schneider e Isabel Gomide, que fazem parte do “Movimentos pela Cultura – RJ”.

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*Em entrevista ao HT, o ator Paulo Verlings também comentou esta situação: Da campanha virtual do balde de gelo para o palco, Paulo Verlings estreia peça sobre a doença ELA no Rio: “Era um assunto que me intrigava muito”

Professora de Direção Teatral da UFRJ e idealizadora e diretora do coletivo Bonobando, Adriana Schneider foi categórica ao definir o atual panorama: “o governo deu um calote nos artistas”. Desde 2002, o edital em questão vem contemplando diversos projetos artísticos no Rio e, com o passar dos anos, como explicou Adriana, o documento tem passado por atualizações positivas. Entre as mudanças, a professora destacou que a prefeitura estava valorizando a democratização dos projetos para levar, cada vez mais, arte e cultura para as Zona Norte e Oeste da cidade. Outra melhoria apontada por Adriana era a contemplação de inciativas de grupos LGBT e afro-brasileiros.

No entanto, tudo isso se desfez quando o compromisso acordado com esses grupos não foi cumprido. De acordo com Adriana Schneider, o “calote” do governo teria sido ocasionado pela combinação de troca de mandato com a crise econômica da cidade. “No ano passado, quando recebemos o edital, achamos uma clausula muito estranha que dizia que, se não houvesse receita, o governo não pagaria pelos projetos contemplados. Outro ponto não comum foi a demora para sair os resultados. Estava tudo muito esquisito. Depois, começamos a entender que o Eduardo Paes estava esperando os resultados das eleições para ver se o Pedro Paulo – candidato do ex-prefeito – seria eleito para liberar ou não a verba do edital. Como ele não ganhou, e sequer passou para o segundo turno, e o Paes viu que a classe artística, em quase maioria, apoiou a candidatura do Marcelo Freixo – candidato de oposição –, ele deu o calote”, explicou.

Com a mudança na gestão do município do Rio de Janeiro, o atual prefeito Marcelo Crivella herdou a dívida com os artistas. Porém, em cinco meses de mandato, o edital ainda não foi pago às mais de 200 produções culturais cariocas. Desta vez, a justificativa do governo é que não há caixa suficiente para arcar com o fomento de R$ 25 milhões negociado na gestão anterior. “Nós estamos tentando mostrar ao Crivella que essa é uma dívida moral que a prefeitura do Rio tem com a gente. Não dá mais para o governo querer fazer uma política desse jeito, nós temos que lutar pelo que foi acordado e exigir respeito ao compromisso. Se ele realmente reconhecesse o valor da cultura para a cidade, ele abriria mão dos gastos com publicidade de campanha para honrar este edital”, argumentou Adriana.

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Afinal, era isso o que o prefeito anterior, Eduardo Paes, fazia, como disse Isabel Gomide. Formada há 30 anos como atriz e com um extenso currículo nas artes, principalmente de rua, há quatro anos a carioca está desempregada. Segundo ela, para solucionar a atual situação das artes no Rio de Janeiro, Marcelo Crivella poderia redistribuir a verba da prefeitura. Em análise aos números do governo municipal, Isabel Gomide e seus companheiros de grupo apontaram que Eduardo Paes investia, de fato, bastante na cultura carioca – coisa que Marcelo Crivella não deu prosseguimento. “É possível haver uma redistribuição dentro das pastas. O Crivella pode tirar dinheiro de um lugar para pôr em outro. O problema é que ele não reconhece a importância de honrar essa dívida da gestão anterior. E aí, fica o discurso dos pobres hospitais e escolas que ficariam sem dinheiro, como se a cultura também não fosse fundamental. Então, eu acho que isso tudo acaba reforçando a posição super desagradável que o atual governo tem colocado a arte carioca”, analisou Isabel Gomide que completou: “Eles acham que artista é rico, não é possível”.

Por falar em reconhecer o valor das artes, esta é uma outra luta do “Movimentos pela Cultura – RJ”. Além de reforçar para o governo a importância de projetos artísticos pela cidade, os profissionais engajados nesta causa ainda destacam o não reconhecimento de parte da sociedade. Segundo a professora da UFRJ Adriana Schneider, para o senso comum, a cultura ainda é algo descartável ou sem muita importância em tempos de crise. “Tem gente que nos chama de vagabundo e esquerdopata porque acreditam que cultura é algo irrelevante, quase uma frescura. Para essas pessoas, em um momento de crise, como o de agora, nós precisamos gastar dinheiro com outras necessidades”, disse Adriana Schneider.

*Em entrevista ao HT, o ator Armando Babaioff também comentou esta situação: Em cartaz no Rio, Armando Babaioff estrela peça “Tom na Fazenda” que levanta discussões a partir da homofobia: “Sinto necessidade de dar voz”

Com isso tudo, o grupo vem se reunindo toda semana na escola Martins Pena para discutir medidas e ações na luta por seus ideais. Entre os projetos, que chegam a reunir mais de 200 pessoas em algumas semanas, está transformar o fomento em uma lei para que não haja futuramente o não cumprimento do edital, como está acontecendo agora. Mas, mesmo assim, Isabel Gomide reconhece que honrar a dívida não é a única luta do grupo. “O fomento não é a salvação da pátria, é só um ponto de todo esse jogo”, pontuou.

Sr Prefeito, pague o fomento. #pagaofomentoprefeito

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Outro trabalho do grupo é dentro da Secretaria de Cultura traçando estratégias para resolver a questão e para que, este ano, não seja lançado um novo edital sem que o do ano anterior seja pago. Para garantir a repercussão das iniciativas, o “Movimentos pela Cultura – RJ” tem incorporado à luta todos aqueles profissionais que, de alguma maneira, estão ligados à cultura. Ou melhor, ainda estão.

Como apontou Adriana Schneider, muitos companheiros de profissão estão desistindo de suas carreiras artísticas por causa do não retorno financeiro. “Eu tenho vários amigos que estão virando padeiro e motorista de aplicativo para conseguir pagar suas contas. Essa situação está muito grave e as pessoas não estão se tocando. Eu não sei se os outros artistas que também estão se prejudicando com isso não sabem do atual panorama ou são filhinhos de papai que não precisam trabalhar. Mas, o que está acontecendo, é que estamos vivendo uma crise sem precedentes e que não sabemos aonde vai parar”, afirmou.

Capa da página do “Movimentos pela Cultura – RJ” no Facebook (Foto: Reprodução)

E não é só Adriana que tem amigos nesta situação. Assim como a professora da UFRJ, Isabel Gomide contou que também conhece companheiros de profissão que hoje estão vendendo cerveja para sobreviver. Inclusive, a própria Isabel é um exemplo de artista que precisou achar novas fontes de renda. Desempregada há quatro anos, hoje ela vive do aluguel dos quartos de sua casa. “Eu tive a sorte de herdar uma moradia do meu pai que, hoje em dia, estou precisando alugar os quartos para sobreviver. Nessa situação toda, eu estou vendo que está se concretizando uma profecia que o Crivella disse certa vez: as pessoas estão trabalhando pelo sorriso. Os artistas estão se apresentando cada vez mais no meio da rua, passando chapéu, indo morar no subúrbio…”, contou Isabel.

Nesse panorama, eis que surge mais uma vez uma palavra que vem se tornado lema para os profissionais de cultura do Rio de Janeiro e até do Brasil: resistência. O substantivo, que traz a ideia de não desistir e nem ceder, apesar das dificuldades, tem sido a garantia de força para Adriana Schneider em sua carreira. À frente do coletivo Bonobando, a diretora do grupo estreou ontem o espetáculo “Cidade Correria” no Teatro Ipanema. Segundo ela, manter a agenda do coletivo ativa é um símbolo de coragem. “A gente está fazendo como dá. Para estrear o espetáculo, recorremos aos amigos para uma vaquinha online para conseguir o básico da produção. Para nós, a bilheteria do teatro é para conseguir pagar a passagem dos artistas, senão eles não conseguem nem ir para se apresentar. Eu acredito que só conseguimos enfrentar esse panorama se fizermos com a cara e a coragem. É claro que eu tenho medo de o teatro não encher e a gente ter ainda mais prejuízo, mas ou a gente faz, ou se reprime”, desabafou Adriana que ainda estreia outro número, desta vez para as crianças, na semana que vem também no Teatro Ipanema.