Diva Menner: ex-The Voice, cantora trans atua em musical e é contundente: “Dinheiro compra o respeito das pessoas”


Em cartaz com o musical “Elas Brilham”, ela vibra com o espaço conquistado desde o reality musical. “Para viver de arte no Brasil tem que ter coragem, peito e eu, enquanto mulher trans, sirvo de espelho para outras que estão vindo”, frisa ela que iniciou transição há quatro anos. “Ser mulher independe de genitália. Sou na essência e na alma”

* Por Carlos Lima Costa

Descoberta pelo Brasil, quando foi semifinalista do The Voice Brasil, em 2020, a cantora trans Diva Menner é uma das sete artistas do teatro musical que transportam o público para uma grande viagem através do tempo celebrando grandes cantoras, nacionais e internacionais, de variadas épocas e gêneros, do rock ao jazz, do samba ao blues, passando pela MPB, costuradas com recursos audiovisuais, no espetáculo Elas Brilham. Em meio a solos de clássicos de Ella Fitzgerald (1917-1996) e Tina Turner, Diva – e suas companheiras Sabrina Korgut, Ivanna Domenyco, Jullie, Thalita Pertuzatti, Débora Pinheiro e Ludmillah Anjos – cantam Uma Nova Mulher, hit de Simone, que lhe traz recordações afetivas e íntimas. “Ouço desde criança, essa canção marcou minha infância e me empodera. Fala sobre vir essa nova mulher de dentro de mim. E eu sou novinha, minha transição tem quatro anos. Graças a Deus, consegui colocar esses desafios em pauta neste espetáculo grandioso”, ressalta.

São novos capítulos de sua vida, que começaram a ser escritos após sua participação no reality musical, quando se mudou para o Rio de Janeiro, deixando Recife, a terra natal. “Se não fosse o The Voice, ainda estaria lá cantando nos casamentos, orquestras, barzinhos, boates. Amo esses universos, mas a gente sabe que viver de arte no Brasil não é vantajoso. Tem que ter coragem, peito e eu, enquanto mulher trans, venho ocupando esse espaço, no segundo musical em menos de um ano. Isso me deixa feliz, porque vou servindo de espelho para as outras que estão vindo e também para as que já estão nesse caminho”, avalia ela, lembrando que subiu ao palco do The Voice, dez dias após se submeter à lipoescultura e de colocar próteses de silicone. “Consegui virar as quatro cadeiras, então, valeu a pena o esforço”, recorda ela, que há seis anos, tatuou uma coruja em seu colo, e que no atual musical ela esconde com maquiagem. “Essa coruja é o símbolo do amor, da filosofia, da inteligência, um animal místico”, diz.

Para Diva, o preconceito vai existir sempre: “Ainda tem pessoas ruins, com coração de pedra, que não enxergam as pessoas. Falo até com relação ao racismo. No Brasil é muito forte. Agora, o preconceito acaba quando você ganha dinheiro. Quando se tem dinheiro, você compra o respeito das pessoas. Não queria que isso fosse uma realidade, mas é”, constata.

Exceções, ela sabe que existem. “Outro dia, em um barzinho, na Lapa, uma mulher preta me chamou de ‘linda’. Perguntei o motivo. Gosto de questionar, porque, às vezes, uma mulher cisgênero não fala que outra cisgênero é bonita. Mulher tem esse lado da disputa. Aí ela disse que era minha fã. Me emocionei quando enfatizou: ‘Você é mulher’. Eu chorava, porque não é sempre que escutamos um depoimento tão verdadeiro em uma noite em que eu estava jogada no meio do povo. Agradeci a Deus, porque ainda existem pessoas com essa sensibilidade de nos olhar e ver a nossa alma. Pra mim, estava falando que eu era bonita, porque sou trans, exuberante. Sou mesma, não vou mentir. Mas é o poder das redes sociais, o poder que a mídia nos dá. Queria muito que daqui a alguns anos as travestis conseguissem esse respeito, independentemente de serem famosas ou não, ricas ou não, prostitutas ou não”, torce, e conta que seu jeito de cantar mudou em relação a época que tinha a imagem masculina.

Diva Menner, ex-The Voice Brasil, participa de musical Elas Brilham (Foto: Divulgação)

Diva ressalta que artisticamente, a região Nordeste costuma dar notoriedade para o artista que canta forró, brega, gêneros com os quais ela nunca se identificou. “Gosto de cantar, soul, jazz, pop. Então, tive que vir para o Rio, onde encontrei pessoas que vestiram a camisa, me deram oportunidades. Mas tenho que matar um leão todos os dias, preciso mostrar que sou capaz, que posso dividir o palco com pessoas de qualquer gênero. Sou feliz, louvo a Deus, agradeço ao universo a oportunidade de mostrar a minha arte. A geração mais nova que está chegando, até tem mente mais aberta. Vejo garotas trans de 15 anos de idade que estão estudando, já tem uma abertura maior, um namoradinho dando a mãozinha para ela no meio da rua. Na minha época, não tinha isso. Hoje em dia não existe aquela coisa ‘vou para uma boate gay’, não tem mais essa divisão”, frisa.

“Sou formada em canto lírico pelo Conservatório Pernambucano de Música e nele conseguimos ter muitas ferramentas para cantar da maneira que desejamos. O canto lírico me dá resistência para eu poder ser a Diva Menner, cantar da maneira que eu sempre quis, como as grandes divas, Whitney Houston, Tina Turner, Ella Fitzgerald, cantoras de vozes agudíssimas. Tive que estudar para conseguir cantar do jeito que eu sempre quis. Aquela forma masculinizada como eu cantava antes não era eu ali, era um personagem que não tinha alma. A partir do momento que eu me assumi pra mim mesma mulher, aquela voz veio naturalmente e eu não tenho cansaço vocal. Já fiz show de três horas cantando, no outro dia fazia mais três horas e muito bem”, explica.

Isso pode ser conferido em cena do espetáculo Elas Brilham. “A Ella Fitzgerald já estava no meu repertório, sou louca por jazz, blues, soul music. Minhas grandes referências são essas cantoras pretas americanas. Mas cantar Tina Turner é outra vibe, é rock’n’roll, é um desafio. Nunca tinha feito nada parecido. Como estou com o mesmo figurino, cabelo, maquiagem, porque não tentar chegar a um degrau do que faz a Tina Turner? Das minhas performances, ela é a única que realmente é uma caracterização. Nas outras é a Diva Menner que está ali no palco cantando de corpo e alma”, explica.

Aquela forma masculinizada como eu cantava antes da transição não era eu ali, era um personagem que não tinha alma – Diva Menner

Em meio à alegria de estar participando desse projeto, relembra sua trajetória e como foi se descobrir trans. “Isso vem desde criancinha. Sempre fui o patinho feio de todos os nichos que eu frequentei. Quando criança a gente não entende muito, mas, no fundo, já sabia que eu era diferente do meu amiguinho que gostava de menina, de jogar bola… Sou filha de militar, ele era separado da minha mãe e todo mês ia visitar a gente e fazia questão de me levar para o jogo de futebol dos amigos. Odiava essa situação, foi traumatizante, tanto que hoje em dia eu odeio futebol (risos). Eu brincava com as bonecas da minha irmã, já era menininha, me apaixonava pelos meus coleguinhas, mas não podia falar. Nos anos 90, isso ainda era um tabu para todo mundo. A única referência que eu tinha de trans na TV era a Roberta Close. Eu era muito novinha e ela estava no auge. Tinha Jorge Lafond (1952-2003) com aquela atmosfera da drag queen barraqueira. Eram as minhas influências, mas caladinha sem falar nada pra mamãe. Se falasse, apanhava”, recorda.

Diva Menner, ao centro, em cena do musical Elas Brilham (Foto: Fabiola Loureiro)

Em cena, as sete artistas cantam de Rita Lee a Elis Regina (1945-1982), Ivone Lara (1922-2018) a Marília Mendonça (1995-2021), mas o espetáculo não é uma espécie de documentário abordando sobre cada uma delas. “Tem que falar de todas e bem rapidamente. Por exemplo, eu falo um texto da Tina no ato da minha aparição, canto as músicas dela e isso acontece com todas as outras atrizes. Quem a conhece, sabe que ela foi uma ativista, que sofreu enquanto mulher preta, sofreu abusos do marido, Eike Turner (1931-2007), que várias vezes tentou matá-la e humilhá-la publicamente”, explica. Enquanto cantam, são exibidas imagens da artista. E em seguida, todas fazem um medley de cinco minutos de músicas que tenham a ver com o repertório da artista. No Rio, o espetáculo Elas Brilham vai ser apresentado até o próximo dia 22. Em seguida, vai passar por capitais como Belém, Recife, Salvador, Brasília, Porto Alegre, Vitória, Belo Horizonte e chega, em novembro, a São Paulo.

QUATRO ANOS DO COMEÇO DA TRANSIÇÃO

Diva demorou para assumir para a família e a sociedade. “Consegui me assumir enquanto mulher trans depois que eu já tinha a minha carteirinha assinada como cantor, a minha casinha, meu aluguel certinho, com minha vida social já começando. Eu cantava na noite, no grupo Garçons Cantores, em bar badalado, no Recife. Naquele momento, falei comigo mesma: ‘Está na hora de ser feliz. Tinha receio de as pessoas não me aceitarem pelo fato de que eu já tinha gravado o meu disco, Homenagem as Divas do Samba, tinha feito aparições em programas de rádio e de TV local, já estava com nome no mercado, tinha uma agenda de shows, quinta a domingo. Aí quando mudei de nome e assumi para todo mundo a Diva Menner, achei que não iam me aceitar. Mas aí descobri um ponto forte na minha vida: Deus. Quando você está bem com você mesma, o universo conspira a favor, então, todos os seus medos, vontades, tudo que você almeja o universo vai trazer para você, que fica plena, conectada com a tua alma e teu corpo. Quando a Diva Menner veio para a minha vida e abriu o meu horizonte, as portas se fecharam lá atrás, que, na verdade, não eram portas, eram pequenas janelinhas, que se abriram, viraram portas imensas e, hoje, estou vivendo de arte no Brasil, conseguindo levar o meu nome em um patamar digno, enquanto cantora, mulher, preta, nordestina, travesti”, orgulha-se e conta a origem de seu nome artístico.

Ser mulher independe de genitália. Sou mulher na essência, na alma, sabe, gosto do meu corpo. Ser mulher é  teu parceiro te enxergar e te desejar como uma mulher – Diva Menner

Quando ainda cantava com a figura masculina, interpretando canções de Mariah Carey, Whitney Houston, Celine Dion, em inglês e francês, começaram a chamá-la de diva e ela acabou adotando como nome artístico. Já o sobrenome Menner veio de uma cantora gospel que ela admirava.

“Hoje, estou vivendo de arte no Brasil, conseguindo levar o meu nome em um patamar digno, enquanto cantora, mulher, preta, nordestina, travesti”, orgulha-se Diva (Foto: Divulgação)

E lembra seu momento especial de transformação. “Eu tinha 34 anos quando comecei a minha transição com uso de hormônios, idas ao endocrinologista. Eu não fiz a cirurgia. Eu acho que ser mulher independe de genitália. Sou mulher na essência, na alma, sabe, gosto do meu corpo. Quando me vejo pelada, eu me sinto bem, não vejo diferença em uma mulher. A minha genitália não me identifica, é muito além disso. Ser mulher é na atitude, é o teu parceiro te enxergar e te desejar como uma mulher, sabe, é mágico. Estou muito feliz com a minha genitália, não penso em tirar não (risos)”, assegura ela.

Sobre o racismo, ela frisa que para ela sempre  foi muito velado. “Nunca consegui perceber o racismo no meu meio de vida. Acho que as pessoas tem tantas referências de cantores pretos hoje em dia e desde sempre, no rock’n’roll, no soul, no jazz, na música popular brasileira, Milton Nascimento, Sandra de Sá, tantos outros, que hoje em dia que a gente tem uma moral, enquanto artista por sermos pretos. Temos algo mais que os demais, a nossa pele, a gente já nasceu com essa coisa da musicalidade, Whitney Houston, Aretha Franklin, Michael Jackson (1958-2009), Jimi Hendrix (1942-1970), não tem comparação, temos um empoderamento. Enquanto artistas, o povo preto é foda.”