De ascendência árabe, Mouhamed Harfouch revisita a questão síria e o debate contemporâneo sobre o Oriente Médio


O ator integra o elenco de “Pé na Jaca”, novela de 2006, que voltará no Globoplay, e estará nos palcos em “Querido Evan Hansen”, montagem que traz em seu bojo temas contemporâneos e que precisam ser discutidos, como depressão, ansiedade e suicídio. Para Mouhamed, muito dessa urgência a toda prova, se deve a essa necessidade cada vez mais premente do uso das redes sociais. Pesquisas apontam, inclusive, que o brasileiro passa metade do dia na Internet e quase quatro horas nas redes sociais, em média. Em entrevista exclusiva, Mouhamed aponta a importância do debate sobre a causa do Oriente Médio e de um mundo mais igualitário às expensas de tanta polaridade: “Vivemos esse clima de lados A e B que não dialogam, o componente tóxico que vocifera, espalha intrigas, mentiras, toxinas e ódio, as fake news disseminadas de forma irresponsável”.

*por Vítor Antunes

Num passado não muito distante, Mouhamed Harfouch teve em seu primeiro papel de destaque um argelino, Hussein, que em “Pé na Jaca” (2006), sonhava em ser famoso. Segundo Carlos Lombardi declarou à época, a participação dele estaria “limitada aos quinze primeiros capítulos” da trama. O tempo mostrou que Mouhamed não fez apenas 15 capítulos, mas a novela inteira e acabou consolidando a sua carreira a partir daquela trama. E detalhe: sem falar uma palavra sequer em árabe. Confirmado o seu retorno no Globoplay, a novela, tal como outras do mesmo período, terá um disclaimer  antes de cada capítulo anunciando que “essa obra pode conter representações negativas e estereótipos da época em que foi realizada”.

Contemporaneamente, além de tudo, há mais uma guerra acontecendo no Oriente Médio. Filho de um sírio, ele lamenta que a questão daquele território tenha voltado a ganhar discussões nas redes sociais desacompanhada de um debate profundo. “Meu pai saiu da Síria para ajudar seus parentes de lá. As questões dos conflitos sempre existiram e não são de agora. O debate sobre a causa do Oriente Médio, é evidente, me traz uma angústia imensa, mas me atinge especialmente como ser humano, pois desejo que o outro tenha alegria, da mesma forma como sonho para os meus filhos. Acho que estamos vendo uma situação de extremos e de falta de diálogo. O mundo extremado não vem só da questão Palestina-Israel, mas se dilata em outras questões como eleições, o clima de lados A e B que não dialogam, o componente tóxico que vocifera, espalha intrigas, mentiras, toxinas e ódio, e fake news disseminadas de forma irresponsável. É difícil depurar aquilo que chega tão rápida e articuladamente. Há ainda os algoritmos que dizem o que queremos ouvir. Acabamos por não ter o meio do caminho, o diálogo, porque estamos 24 horas sendo contaminados. É algo frustrante”.

Torço muito para que tenhamos uma situação de dignidade para todos, que possam ter a possibilidade de criar filhos em segurança, ter assistência médica, colocar na escola, comprar sua comida, plantar sua horta, poder viver, ser feliz, sentir-se seguro e não ter medo. Eu sou fruto do encontro de árabes e portugueses, essa mistura brasileira. Melhoramos quando estamos diante da diversidade para que cresçamos como indivíduo e sociedade – Mouhamed Harfouch.

No segundo semestre, “Rensga Hits” volta ao Globoplay. Mouhamed voltaria aos palcos com uma montagem autoral, sobre a história de sua ancestralidade, que acabou suplantada pela montagem de “Meu Querido Evan Hansen“. Uma história que traz temas importantes e profundos, como a ansiedade, a depressão e o suicídio. Nos Estados Unidos a montagem ganhou 6 prêmios Tony e agora recebe uma encenação com elenco estelar no Brasil. Em 13 de junho no Rio no Teatro Multiplan e em agosto no Teatro Liberdade em São Paulo. Além de Mouhamed Harfouch, a peça conta com Hugo Bonemer, Thati Lopes, Vanessa Gerbelli, Flávia Santana e um elenco numeroso, além da concepção e direção original de Tadeu Aguiar.

Para Mouhamed, a peça tratar sobre a “saúde mental das pessoas, é importante. É uma encenação que aborda ausências, e isso toca no lugar da família, da amizade e das relações que estão, às vezes, ruidosas pela correria do dia a dia, da urgência da tecnologia, que nos envolve e toma o que é mais precioso: o tempo com a família e amigos. Hoje estamos perdidos no meio de tanta velocidade. É um chamado de consciência”.

Conforme o relatório “Digital in 2022: Brazil”, elaborado pela Hootsuite e We Are Social, os brasileiros gastaram, em média, mais de 10 horas diárias na internet, com 3 horas e 41 minutos dedicados às redes sociais. Além disso, uma pesquisa da Comscore revela que o Brasil é o terceiro país que mais utiliza redes sociais no mundo, com 131,506 milhões de contas ativas. Destas, 127,4 milhões representam usuários únicos nas redes sociais, correspondendo a 96,9% do total.

“O uso excessivo das redes sociais pode levar ao desenvolvimento de diversos problemas. Isso pode ser causado por uma série de fatores como comparação social, cyberbullying, exposição a notícias negativas, isolamento social e falta de interações sociais significativas no mundo real”, afirma Jair Soares, presidente do Instituto Brasileiro de Formação de Terapeutas (IBFT). São poucos os estudos científicos que se debrucem sobre a relação entre redes sociais e suicídio, por exemplo. De modo que, ainda que possa haver uma conexão entre os casos, os resultados são inconclusivos.

Segundo Mouhamed, é fundamental a arte se apropriar de temas como esse. “Temos que pensar nisso. Estamos com megabytes e velocidades superlativas, mas é importante lembrar que temos nosso HD, nossa cabeça, nossa capacidade de armazenamento e de superar as coisas. O celular, quando chega ao final da sua vida útil, é trocado, mas nós, não. A gente precisa ter tempo e olhar para o que é importante para formatar nossa saúde mental”.

As redes sociais são urgências modernas, a gente não desliga mais, e isso cobra um preço. O que estamos pagando reflete nas relações e na nossa saúde mental. O engajamento contínuo, os likes e cancelamentos, a necessidade de aprovação são potencializados pela vida exposta de hoje em dia. Quem não está no meio dessa velocidade está excluído, é um outsider, não existe. Estamos lidando com muitas carências emocionais, toxinas que minam a autoestima, as relações, as inspirações para se comunicar com o que deseja, o que toca o coração e a vontade – Mouhamed Harfouch

Mouhamed Harfouch: nos palcos com “Querido Evan Hansen” e com “Rensga Hits”, no Globoplay (Foto: Divulgação/Globo)

HISTÓRIAS DE AMORES

Um dos poemas de Vinicius de Moraes (1913-1980) diz: “Filhos? Melhor não tê-los!
Mas, se não os temos, como sabê-los?”. E com os tempos de internet, que cada vez mais cedo seduzem as crianças, eis aí um desafio para equilibrar o tempo de tela dos pequenos. “Não tenho a fórmula secreta nem receita de bolo. Temos que oferecer o nosso tempo sem tela, um com o outro junto às crianças. Procurando fazer programas com elas, brincar, jogar bola, fazer coisas juntos que não estejam atreladas à tecnologia. A qualidade é o necessário, precisamos da qualidade do tempo. A gente trabalha muito e está simultaneamente em muitos lugares, mas é fundamental ter esse compromisso, essa vontade de conversar, de se olhar e de dizer o quanto ama. As urgências sempre tentam nos vencer, sempre tem um telefonema, um WhatsApp, um e-mail para responder, e a pessoa do seu lado precisa de nós. Pessoa essa que não vai apitar, mas vai dar sinais de que precisa de nós. Isso tem que estar no olhar, na sensibilidade, e precisamos do agora. As relações são muito importantes. Temos que tentar equilibrar essa velocidade da tecnologia, da inteligência artificial, e o que ela provoca de novo paradigma”.

A tecnologia é mais rápida do que podemos processar, e é preciso fazer uma freada: o que é bom para mim? O que é precioso? Temos que falar “eu te amo”, falar sem celular, respirar com outra pessoa – Mouhamed Harfouch

Já há quase 30 anos, Mouhamed fez uma de suas primeiras pontas como ator, na novela “História de Amor“. Ele relembra: “Recentemente revi aquela cena, que é curta, pequena, e eu lembro daquele dia e o que fiz depois que saí dela. Foi muito bom ver aquele menino. Era tudo muito novo. Lembro da Eva Wilma (1933-2021), do Fernando Wellington, e de como eu estava me sentindo pequeno no meio daquilo tudo. Isso só me faz pensar que a profissão é uma caminhada, um tijolo de cada vez. Quando olho aquele jovem ator, penso no que ele não imaginaria passar e ralar na profissão para erguer. Acho que minha carreira foi construída por pequenas oportunidades que fui agarrando, fazendo com que fossem me levando a grandes caminhos. Tem gente que é meteórica e pega grandes papéis de cara, mas meu caso não foi esse”.

Mouhamed Harfouch em “História de Amor”. Uma das primeiras aparições do ator nas novelas (Foto: Reprodução/Globoplay)

Sobre as novas gerações de atores, Harfouch pondera: “Temos um time de atores jovens e é bonito ver o teatro musical crescer tanto. É uma vertente que tem um quadro de qualidade grande e que se incorporou muito no Brasil. Temos pessoas talentosas, preparadas, vocacionadas. Porém, é preciso e importante dialogar com os grandes que abriram caminho, que se firmaram TV, teatro, musicais, e que chegaram onde chegaram. Claro que a juventude também trouxe a internet, outra possibilidade. Hoje em dia você tem youtubers, tiktokers, influenciadores que apresentam novidades e mudam a forma de comunicação. Acho que estamos em uma revolução gigantesca e tentando nos achar”.

Mouhamed Harfouch, seus filhos Ana Flor e Bento, e Clarissa, sua esposa (Foto: Reprodução/Gshow)

Num mundo que não cansa de surpreender, o ator destaca a importância e a necessidade dos encontros como forma de somar e multiplicar saberes. “Ainda que Chico Buarque sempre me toque muito, a frase que mais me emociona mesmo é do Vinicius de Moraes (1913-1980): “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”.