Dani Ornellas faz espetáculo que aborda escravização dos corpos negros e lembra episódio de racismo em novela


No mês da Consciência Negra, a atriz protagoniza montagem inspirada em “12 anos de escravidão’, de Solomon Northup, ao lado de Carmo Dalla Vecchia e David Júnior em uma releitura da história através da ótica feminina negra, presente na direção de Onisajé e Tatiana Tiburcio. Nesta entrevista, Dani fala sobre o espetáculo e a representatividade de estar em cena com ele neste novembro. Ela também recorda e lamenta o que viveu nos bastidores de sua última novela, ‘Nos Tempos do imperador’, na Globo, e propõe reflexões para quem se diz antirracista: “O que você está fazendo efetivamente com as suas escolhas, o seu olhar, com a sua escrita? O que você está fazendo que o seu avô, bisavô, não fez?”

*Por Brunna Condini

Fazendo da sua vida e da sua arte ferramentas de transformação, a atriz Dani Ornellas está em cena ao lado de David Júnior e Carmo Dalla Vecchia com o espetáculo ‘12 Anos ou Memória da Queda’, inspirado no livro que deu origem ao filme vencedor do Oscar, ‘12 anos de Escravidão. “Esse texto me atravessa de muitas formas. Não vemos muitas famílias pretas no teatro e no audiovisual, então essa peça torna possível o acesso entre pessoas pretas. Uma conexão, um trabalho também em relação ao afeto, porque o racismo tirou essa possibilidade durante muito tempo”, diz Dani.

E acrescenta: “Sobretudo vinda do processo da novela ‘Nos Tempos do Imperador’ – ela e as atrizes Roberta Rodrigues e Cinnara Leal denunciaram episódios de racismo durante as gravações – não me furto de falar sobre o que aconteceu. Sou uma mulher preta neste país que resolveu não silenciar diante de uma situação de violência do tamanho da que passei. Muita gente veio me perguntar, debochou, dizendo que o compliance da emissora (Globo) não quis ouvir a gente. Mas já me sinto vitoriosa por não ter silenciado diante de uma situação de violência vinda de uma empresa deste tamanho. Isso para mim já uma vitória, porque muita gente se calou. Então, esse processo que vivo hoje vem junto disso tudo. Está na minha humanidade, na composição de mulher preta retinta que eu sou”.

Dani Ornellas fala do espetáculo '12 anos ou A memória da queda', e comenta episódio de racismo em novela (Foto: Ana Alexandrino)

Dani Ornellas está no espetáculo ’12 anos ou A memória da queda’, e comenta episódio o racismo que sofreu em novela (Foto: Ana Alexandrino)

Na época, as denúncias das atrizes foram direcionadas ao diretor-geral da novela, Vinicius Coimbra, que foi afastado. “É uma situação que acaba de completar um ano e hoje consigo falar sem ter uma crise nervosa, começar a chorar. Eu adoeci muito durante o processo dessa novela. A Roberta também. Faço tratamento por conta disso, pago com o meu dinheiro. Primeiro no meu olho, porque a Rede Globo e o Vinicius Coimbra decidiram colocar lentes de contato e deu infiltração na minha córnea. Depois, herpes por trauma, e o médico disse que eu poderia perder a visão do olho esquerdo. Não foco até hoje com esse olho por isso. Sofri um acidente de trabalho na empresa onde eu atuava naquele momento e não fui acompanhada. Também arco com o meu tratamento psicológico. A Roberta não conseguiu terminar a novela de tão adoecida que ficou. Eu continuei, mas passava mal todos os dias no banheiro”, recorda.

David Junior, Carmo Dalla Vecchia e Dani Ornellas no espetáculo '12 anos ou A memória da queda' (Foto: Ale Catan)

David Junior, Carmo Dalla Vecchia e Dani Ornellas no espetáculo ’12 anos ou A memória da queda’ (Foto: Ale Catan)

“Ainda assim viramos motivo de deboche para muitas pessoas no meio. Sou artista, trabalho onde me convidam, e se sofro algum tipo de violência no local que estou exercendo o meu ofício, não posso ser responsabilizada por isso. Muita gente se coloca politicamente ativa, mas na hora de ter coragem de dizer o que presenciou, preferiu mais uma vez omitir. Mas eu não sou do silêncio e nem da omissão. E tudo o que falo aqui tenho como provar. Hoje estamos no Ministério Público do trabalho conversando sobre a condição que fomos submetidas durante quase dois anos e a empresa fingindo que não sabia de nada”.

"Não vemos muitas famílias pretas no audiovisual e no teatro, então essa peça torna possível o acesso entre pessoas pretas" (Foto: Nana Moraes)

“Não vemos muitas famílias pretas no audiovisual e no teatro, então essa peça torna possível o acesso entre pessoas pretas” (Foto: Nana Moraes)

Aos 44 anos, a atriz avalia: “Costumo dizer que há 27 anos, tempo que tenho de carreira, sofro alguma relação abusiva com a arte. É triste dizer que são poucos os trabalhos em que não vivenciei situações assim. Quando uma jovem vem me dizer que deseja ser artista, eu digo: “Olha com atenção, vem devagar. Sem a urgência que a vida dá, respira a arte, se você não conseguir viver sem isso, aí entra”. Porque mulher preta, retinta, nesse país ser artista, é muito abuso. E sou abusada. Se lá atrás eu tivesse escutado o que as pessoas diziam, não tinha chegado aqui. Sai da casa dos meus pais aos 17 anos porque não aguentava mais as pessoas dizendo o que eu tinha ou não que fazer. Me sustento com arte desde então. Me viro em 50 para continuar vivendo dela”.

Dani comenta ainda, sobre o racismo no audiovisual. “Não adianta me convidar para ser cota no seu projeto e não me inserir na sua história, não dar relevância para a minha personagem. Chega, né? Já passou da hora de termos mais protagonismo. Claro que sou chamada para muitos trabalhos. Fui convidada pelo Vinicius para fazer a novela, por isso me chocou tanto passar pelo que passei. Mas já ocupei um lugar, as pessoas conhecem meu trabalho, sabem que entrego. Só que acho que também precisam se perguntar se nos seus roteiros ainda existem personagens pretos e personagens brancos. O audiovisual é racista e excludente. Por isso eu também produzo, dirijo e escrevo. Para ter mais diversidade de personagens preciso criar”, observa.

Cada um atuando com suas ferramentas

Retornando ao teatro, onde começou a carreira, a atriz está em cena em ’12 anos ou A memória da queda’, na montagem idealizada por Felipe Heráclito Lima, que aborda uma temática ainda pulsante nos dias atuais: a escravização dos corpos negros. A peça apresenta uma releitura da história através da ótica feminina negra, presente na direção de Onisajé Tatiana Tiburcio. “Sabemos que o espaço em que estamos, por exemplo, fica em uma região que foi de muita luta, muita resistência. Um local que têm cemitérios de negros, dos povos originários, indígenas. Isso é bem representativo. E essa história ainda não está nos nossos livros da forma que deveria estar. Então, se não está, nós artistas, comunicadores, precisamos usar nossas melhores ferramentas para que isso chegue ao alcance de muitas pessoas. No mês da Consciência Negra termos voz neste espaço que estamos ocupando é transformador. Para a gente que faz e para quem tem a possibilidade de assistir”.

Dani com David Junior e Carmo Dalla Vecchia (fundo), no espetáculo '12 anos ou A memória da queda' (Foto: Ale Catan)

Dani com David Junior e Carmo Dalla Vecchia (fundo), no espetáculo ’12 anos ou A memória da queda’ (Foto: Ale Catan)

O racismo é problema de todos. E neste mês da Consciência Negra, foram muitos os espaços abertos para a reflexão, sempre lembrando que somado a isso, é preciso debate e ações afirmativas. “’Numa sociedade racista, não basta não ser racista. É necessário ser antirracista’, o pensamento da escritora e ativista Angela Davis – do livro ‘Mulheres, raça e classe’ (1981) – ilumina o fato de que para que as mudanças aconteçam e sejam significativas, é necessário que o antirracismo parta não só de ações individuais, mas também através da educação”.

Aproveitando o momento, Dani usa o espaço, para falar diretamente com quem se diz antirracista. “O que você está fazendo efetivamente para ser antirracista com as suas escolhas, o seu olhar, com a sua escrita? O que você está fazendo que o seu avô, bisavô, não fez? O que você está fazendo para se responsabilizar pela história, o legado da sua família? Ser antirracista não é postar nas redes que é. Quero saber se você é meu aliado de forma ativa e efetiva. Dizer que não tem informação em 2022, não cola. É feio. A realidade só vai mudar quando os meus aliados cobrarem junto comigo. O sonho deste novembro, é que no próximo as pessoas já possam estar mais tocadas e o que falei aqui possa se transformar”.