Da fresta, no isolamento social em tempos de Covid-19, eu vejo Rubem Fonseca ir


A jornalista Brunna Condini, apaixonada pela obra do autor que morreu semana passada aos 94 anos, questiona: “Será que Rubem Fonseca sentia o medo que nós estamos sentindo? Será que ele pensou no mundo pós-coronavírus?
Talvez o escritor experimentasse uma escrita inédita, imbuída do sentimento pós-apocalíptico, trazendo alguma fé no ser humano. Ou talvez ele dilacerasse de vez o que precisa ser rompido, com uma narrativa direta, dizendo, através da sua boa ficção: aqui está o personagem de um mundo novo, devastado. Recomece ou será extinto, camarada”

Rubem Fonseca (1925-2020): o realismo na ficção de um gênio que a geração Z precisa ler (Foto: Divulgação)

*Por Brunna Condini

 Não tenho contado os dias de quarentena. Mas creio que já sejam mais de 30.

Observo o mundo das frestas.  Cibernéticas e da minha varanda. E da minha mesa de trabalho. E do meu sofá. E reparei esses dias que o azul que escolhi para a parede não é igual ao outro, embora todo mundo ache que sim.

E todos os dias parecem iguais. E também não são. Até porque não é todo dia que um Rubem Fonseca morre. Sim, ele se foi semana passada, aos 94 anos. Um dos maiores escritores de contos e romances deste país. Um dos meus preferidos em inspiração. A escrita afiada e reta de Rubem Fonseca me fez querer escrever sobre gente que bem que poderia existir.

Rubem escrevia sobre retratos duros de um Brasil, sem romantização, sem máscaras. Tinha violência, desigualdades, injustiças. Tentaram censurá-lo lá atrás, mas ele seguiu. Seguraram por um tempo o seu “Feliz Ano Novo” em uma época que a ditadura violentava mais que os personagens marginais dessa sua obra. E, nestes dias que correm, ainda pedem bis. Mas isso é outro assunto.

Mas fico pensando aqui, o que estaria Rubem Fonseca escrevendo hoje?

Nestes tempos tão audiovisuais quanto seus 30 livros. Nestes dias que misturam ficção científica e terror em uma espécie de documentário aberto em que ansiamos por um final melhor, porque feliz não há de ser.

Nestes tempos que escancaram ainda mais as desigualdades, quando precisamos sair de cena para preservar a vida, e percebemos que não somos protagonistas da nossa sobrevivência.

Rubem falaria exatamente do quê?

Poderia continuar escrevendo sobre as contradições sociais que se esgarçam. Sobre falarmos na valorização da vida com o isolamento, para gente que precisa sair para trazer o que comer no dia.

Será que Rubem Fonseca sentia o medo que nós estamos sentindo?

Será que ele pensou no mundo pós-coronavírus?

Talvez o escritor experimentasse uma escrita inédita, imbuída do sentimento pós-apocalíptico, trazendo alguma fé no ser humano. Ou talvez ele dilacerasse de vez o que precisa ser rompido, com uma narrativa direta, dizendo, através da sua boa ficção: aqui está o personagem de um mundo novo, devastado. Recomece ou será extinto, camarada.

Tenho sonhado muito. Os enredos estão cada vez mais rebuscados. Cenas que, editadas pelo meu subconsciente, fazem muito sentido. Sonhei com Rubem, claro. Na verdade, sonhei com meu pai, que me despertou o amor pela literatura, mas me repreendeu quando peguei obras de Rubem Fonseca aos 14 anos e fui ler escondida. Era brutal demais para a minha idade, mas eu queria ler os bons, os que faziam acreditar no que se estava lendo.

Será que Fonseca misturaria em uma nova obra sua crua ficção, com os fatos que nos trouxeram até aqui? Falaria do tipo de história que seremos para as gerações que virão?

E, como em seu brilhante “Agosto”, em que traçou um caminho até a morte de Getúlio, iria falar sobre a ganância, a sede de poder e a obscura política que se faz em nossa sociedade, e segue deixando à margem quem não interessa?

Criaria ele um personagem que, como um solitário convicto, já vivia isolado, amedrontado pela vida feroz lá fora, e que atingiria a cura pensando que o mundo, embora devastado, teria que reiniciar?

Será que Rubem ainda escreveria?

Será que vamos conseguir reiniciar?

Rubem Fonseca: (1925-2020): estilo que influenciou toda uma geração de escritores e leitores (Foto: Zeca Fonseca/Divulgação)