“Terra Papagalli”, com direção de Marcello Valle, é a versão teatral do livro homônimo de José Roberto Torero e de Marcus Aurelius Pimenta. A dramaturgia, assinada por André Vieira, Daniel Belmonte e pelo diretor, é ponto de partida para a encenação em que 11 atores dão vida a Cosme Fernandes, português que, tendo sido degredado da Europa, veio junto com a frota de Cabral para a terra que futuramente seria conhecida como Brasil. A vida dele entre os índios e os europeus, contada no livro e na peça em uma mistura de fatos reais e fictícios, apresenta um interessantíssimo ponto de vista da história do país desse período um tanto obscuro. Além de Vieira e de Belmonte, no elenco composto de ótimos trabalhos, estão também André Rosa, Felipe Frazão, João Marcelo Iglesias, Jojo Rodrigues, Rômulo Chindelar, Sarah Lessa, Thiago Chagas, Tomaz Nogueira e Victor Albuquerque. A montagem fica em cartaz até o dia 7 de agosto no Teatro de Arena do Espaço SESC Copacabana.
Publicado em 1997, o livro “Terra Papagalli”, narrado em primeira pessoa, se organiza nos dez mandamentos para se bem viver no Terra dos Papagaios. Português de origem judaica, o ex-seminarista Cosme Fernandes, quando tinha mais ou menos 20 anos, foi expulso da Europa devido a um caso de amor. Assim, preso à expedição de Cabral na aventura do descobrimento de um novo caminho para as Índias, ele acabou reconstruindo sua vida entre os índios e os europeus que passaram a conviver no que depois se chamou Brasil.
A chegada de Cristóvão Colombo, em 1492, ao outro lado do Oceano Atlântico apimentou a disputa de Portugal e Espanha pela posse das Ilhas Canárias e da costa africana. O Papa Alexandre VI, vendo-se ameaçado pela França quanto ao governo de Nápoles, intermediou a divisão dos trajetos recém descobertos. De início, em 1493, as primeiras cem léguas pertenceriam a Portugal. Um ano depois, em Tordesilhas, um novo tratado foi feito e, a partir dele, Dom João ganhava 370 léguas a partir das Ilhas Canárias, que eram da Espanha. Coube, assim, ao inexperiente navegador Pedro Alvares Cabral comandar uma expedição que fizesse o reconhecimento desse novo terreno desconhecido oficialmente. (Há uma teoria de que, em 1498, o navegador Duarte Pacheco já teria feito uma viagem secreta ao Brasil em nome da coroa portuguesa.)
Expulsos os mouros e convertidos ao catolicismo (à força pela Inquisição) os judeus, os “indianos” precisavam também abraçar a “fé verdadeira”, concedendo, como já tinham feito os outros povos, seus bens à coroa (seja essa de Portugal, de Castela ou de Aragão). Diferente deles, porém, assim como aos africanos, aos índios não bastava assumir uma nova crença. Considerados de uma raça inferior, eles eram escravizados e vendidos como se fossem animais. (Antes de morrer, em 1504, a Rainha Isabel de Castela mandou prender Colombo por essa prática considerada indigna. Os outros monarcas do século XVI, no entanto, não seguiram o seu exemplo, pautados inclusive pela falta de consenso dos teólogos do Vaticano em relação ao tema.) Além do tráfico de pau-brasil, então, a venda de índios engordava os cofres ibéricos.
Na se sabe ao certo quando exatamente Cosme Fernandes veio para o Brasil, mas historiadores acreditam que, em 1502, ele já estava morando em uma região batizada de Cananeia, no litoral sul de São Paulo. Assim como a coroa espanhola, Portugal não havia permitido a vinda de mulheres para os povos d`além mar, o que se foi acontecer na época das Capitanias Hereditárias. Dessa forma, além das famílias nativas das regiões, os europeus que se estabeleceram por aqui formaram novas famílias, dando início à miscigenação. Na narrativa de José Roberto Torero e de Marcus Aurelius Pimenta, o protagonista teve várias esposas e muitos filhos. A enorme respeitabilidade (e força militar) de Cosme, 30 anos depois de ter chegado ao Brasil, torna esse argumento ainda mais plausível do que suas necessidades sexuais e sua liberdade moral-religiosa.
Em 1531, com a chegada de Martim Afonso de Souza, Cosme Fernandes, também chamado de Bacharel da Cananeia, é visto como um dos europeus mais importantes do Brasil ao lado de Diogo Álvares Correa, João Ramalho e de Antônio Rodrigues. Uma batalha entre o novo governo e suas tropas, essas que tinham auxílio de espanhóis e de franceses – ambos, mais que o portugueses, conheciam melhor a vida por aqui –, se travou. Dono de centenas de escravos e aliado de diversos caciques, Cosme venceu a batalha, expulsando os portugueses da Vila de São Vicente. A contemporaneidade desconhece o paradeiro final do Bacharel, embora reconheça nele uma biografia capaz de dar conta da complexa identidade da formação do que hoje se conhece como “povo brasileiro”.
Diferente do que acontece no livro, na peça “Terra Papagali”, o espectador não sabe onde e quando a história vai terminar enquanto assiste. Por mais interessante que a narrativa adaptada pode ser, lá pelas tantas, com vários atores, e todos eles aparentemente da mesma idade, interpretando o mesmo personagem, vem o cansaço. As cenas finais, tão boas quanto as primeiras, não vencem o desafio do ritmo por causa disso. O monólogo final em defesa das tribos indígenas que ainda hoje sofrem no país, por mais essencial que seja na construção de um mundo mais humano, esteticamente surge em um contexto debilitado, que lhe é prejudicial. Mesmo assim, os méritos da dramaturgia precisam ser valorizados e aplaudidos sobretudo no que diz respeito à encenação.
A direção de Marcelo Valle, com codireção de Danilo Moraes e direção de movimento de Dani Cavanellas, organiza a narrativa em um jogo muito interessante entre os atores. O espetáculo, atendendo às características da obra na qual se baseia, é irônico sem fazer disso uma proposta menos séria. A ficcionalização da história, ganhando contornos bastante válidos pela corporalidade dos intérpretes, surge como um elemento capaz de potencializar a importância histórica do todo positivamente. Cada novo quadro surge no palco com enorme criatividade e força em uma articulação que só não é melhor pelo enrubescimento do ritmo da dramaturgia como já se apontou.
Todos os trabalhos de interpretação são bastante bons. João Marcelo Iglesias, Jojo Rodrigues, Rômulo Chindelar, Sarah Lessa, Tomaz Nogueira, Daniel Belmonte, mas principalmente André Vieira, Victor Albuquerque e Thiago Chagas e sobretudo Felipe Frazão e André Rosa se destacam em trabalhos vigorosos, cheios de força, intensidade e equilíbrio. Em uma encenação em que todos os atores permanecem quase inteiramente em cena de alguma forma, a coesão das interpretações fica ainda mais responsável pela qualidade do todo. Isso acontece aqui, o que reforça as justificativas para o aplauso ao conjunto.
O cenário de Júlia Deccache e de Carla Ferraz, a luz de Maurício Fuziyama e de Renato Machado, a música original e a direção musical de Rodrigo Lima estão plenamente unidos em quadro estruturado com poucos elementos, mas valorosos sobretudo na viabilização do bom rimo inicial. O figurino, os adereços e o visagismo de Othon Spenner vencem o desafio de providenciar o jogo na caracterização dos diversos personagens, mas destacando a relação estética deles entre si, todos partes de um só espetáculo com sólida concepção.
“Terra Papagalli”, produzido por André Vieira e por Bruno Fagotti, vale a pena ser visto sobretudo por aqueles que reconhecem a importância do conhecimento da história para a compreensão do presente. Divertido e qualificado!
Serviço:
Onde: Teatro Arena – Sesc Copacabana
Quando: Quarta à sabado às 20:30 e Domingo às 16h e 19h *em virtude da abertura das Olimpíadas, não teremos sessões no dia 05/08
Quanto: R$ 20 inteira e R$ 10 meia.
Ficha técnica
Texto original: José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta
Adaptação: André Vieira, Daniel Belmonte e Marcelo Valle
Direção: Marcelo Valle
Codireção: Danilo Moraes
Direção de movimento: Dani Cavanellas
Elenco: André Rosa, André Vieira, Daniel Belmonte, Felipe Frazão, João Marcelo Iglesias, Jojo Rodrigues, Rômulo Chindelar, Sarah Lessa, Thiago Chagas, Tomaz Nogueira e Victor Albuquerque
Treinamento de coro: Fabianna Mello e Souza
Workshop vocal: Davi Guilhermme
Iluminação: Maurício Fuziyama e Renato Machado
Cenário: Júlia Deccache e Carla Ferraz
Música original e direção musical: Rodrigo Lim
Figurino, adereços e visagismo: Othon Spennr
Projeto gráfico: Bruno Dante
Fotografia: LuCa Ayres
Assessoria de imprensa: Breno Motta
Produção: André Vieira e Bruno Fagotti
* Rodrigo Monteiro é dono do blog “Crítica Teatral” (clique aqui pra ler) , licenciado em Letras – Português/Inglês pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, bacharel em Comunicação Social – Habilitação Realização Audiovisual, com Especialização em Roteiro e em Direção de Arte pela mesma universidade, e Mestre em Artes Cênicas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor no Curso de Bacharelado em Design da Faculdade SENAI/Cetiqt. Jurado do Prêmio de Teatro da APTR (Associação de Produtores Teatrais do Rio de Janeiro) desde 2012.
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