“Por amor ao mundo – um encontro com Hannah Arendt” é o mais novo espetáculo escrito por Marcia Zanelatto com direção de Isaac Bernat, dupla que já assinou “Deixa Clarear” e “Desalinho”. Dentre muitos méritos, está o sucesso dessa produção em aproximar alguns pontos da vida da filósofa de origem germânica de aspectos mais marcantes do seu pensamento. No todo, o espetáculo é um convite para descobrir melhor tanto o aspecto mais humano como principalmente as obras escritas por essa figura tão essencial na contemporaneidade. Com Kelzy Ecard, Carolina Ferman e Michel Robin no elenco, a peça está em cartaz no Centro Cultural do Banco do Brasil até o próximo domingo. É correr para assistir.
Talvez um dos pontos mais significativos em tudo aquilo que diz respeito à Hannah Arendt (1906-1975) seja a polêmica criada em torno da recepção de seus artigos ao The New Yorker por ocasião do julgamento de Adolf Eichmann (1906-1962). Antigo chefe da Seção de Assuntos Judeus no Departamento de Segurança do Terceiro Reich, ele foi um dos protagonistas das “soluções” criadas pelos nazistas para resolver a questão judaica: a emigração dos judeus dos territórios ocupados por Hitler, o envio a campo de trabalhos forçados e, por fim, o extermínio principalmente nas câmaras de gás. Preso com o fim da 2ª Guerra, em 1945, Eichmann fugiu, conseguindo assim não ser julgado pelos tribunais de Nuremberg, onde muito provavelmente teria sido condenado. Porém, em 1960, ele foi capturado e enviado para os tribunais de Israel. Diferente daquele, em que os aliados julgaram os crimes de guerra, nessa ocasião, os judeus analisaram os crimes contra a humanidade. A judia Hannah Arendt assistiu a todo o processo.
Hannah Arendt escapou do genocídio contra os judeus porque, na medida em que aumentava o poder de Hitler na Europa, mais de sua terra natal ela se afastava. Formada em filosofia desde o fim dos anos 20, seu livro “As origens do totalitarismo”, de 1951, já situava, porém, seu pensamento como reflexão motivada pelas consequências do nazismo. Para ela, o colapso moral vivenciado pelo povo alemão do Tratado de Versalhes (1919) ao ápice do Terceiro Reich explica o contexto em meio ao qual um burocrata medíocre como Adolf Eichmann se tornou um genocida. A polêmica desse pensamento surgiu porque aparentemente Arendt, através dele, perdoava o carrasco, o que qualquer análise mais profunda sobre sua obra pode facilmente negar.
Adolf Eichmann foi enforcado em maio de 1962. Um ano depois, o livro “A banalidade do mal”, de Hannah Arendt, ganhou o mundo, rendendo à autora diversos ataques principalmente da comunidade judaica. O maior legado dessa obra é promover uma reflexão sobre o fato de que o mesmo contexto capaz de ter brutalmente assassinado tantos milhões de judeus também pode ter “justificado” o que aconteceu com os índios, com os negros, com os homossexuais na história recente. Nesse sentido, por aproximar essa ferida da nossa realidade, o texto de “Por amor ao mundo – um encontro com Hannah Arendt” surge, na programação teatral carioca, com força essencial.
A direção de Isaac Bernat vence o desafio de equilibrar, no tempo cênico, a biografia de Hannah Arendt com o seu pensamento. No texto de Zanelatto, situações banais, como a de Hannah (Kelzy Ecard) e Mary MacCarthy (Carolina Ferman) bebendo em bar sob os olhos atentos de um garçom curioso (Michel Robim), são facilidades que a dramaturgia oferece ao público menos intelectualizado. É interessante notar como a direção, talvez compreendendo os interesses da autora, faz desses motivos apenas convite inicial para algo mais profundo. Em outras palavras, é como se a encenação fisgasse o tolo para oferecer-lhe crescimento.
Outro mérito de Bernat está na alternância entre o jogo que se dá entre os personagens e naquele desses com o público. A cena em que a atriz Kelzy Ecard explica para o público o motivo pelo qual ela, enquanto intérprete, não está fumando em cena prova o quão bem amarrados são os acordos estabelecidos, nesse espetáculo, entre palco e plateia. Ao longo de pouco mais de sessenta minutos, o espetáculo flui, terminando com a vontade de mais.
Kelzy Ecard (Hannah) brilha mais uma vez, movimentando suas expressões por lugares tão sutis quanto fortes. Capaz de construir e de manter as estruturas necessárias para uma reflexão filosófica e, ao mesmo tempo, divertir e emocionar na representação de uma mulher como Arendt, Ecard renova os elogios a ela tantas vezes feitos ao longo de sua carreira. Carolina Ferman propõe bases para bom jogo com Ecard e Michel Robim, apesar do excesso de gestos na cena inicial, não atrapalha.
Sob a belíssima luz de Aurélio de Simoni, o cenário de Dóris Rollemberg oferece, no painel do fundo, excelente motivo para refletir sobre o processo de evolução do pensamento. Na peça, é esse afinal o ponto que separa os homens dos animais e que pode ser capaz de coibir novos holocaustos. No que diz respeito ao mobiliário, porém, o desafio desse de se tornar sempre um elemento novo em cada cena acaba por carregar os pontos mais superficiais do espetáculo negativamente. Com resultados similares, na trilha sonora original de Alfredo Del Penho, há um infantil apreço pela repetição de palavras e suas sonoridades possíveis. Com elogiável contribuição à palheta de cores da estética visual do quadro como um todo, são ótimos os figurinos de Desirée Bastos.
Em 2015, celebra-se os setenta anos do fim da 2ª Guerra e os quarenta anos da morte de Hannah Arendt. O ótimo “Por amor ao mundo – um encontro com Hannah Arendt” merece ser visto!
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Ficha Técnica:
Dramaturgia – Marcia Zanelatto
Direção – Isaac Bernat
Elenco – Kelzy Ecard, Carolina Ferman, Michel Robim
Cenografia – Doris Rollemberg
Iluminação – Aurélio de Simoni
Figurinos – Desirée Bastos
Direção musical – Alfredo Del-Penho
Direção de movimentos – Marcelle Sampaio
Direção de produção – Roberto Jerônimo
Idealização e Realização – Marcia Zanelatto/ Transa Arte e Conteúdo
Serviço:
Onde: Centro Cultural Banco do Brasil Rio
Quando: Até 4 de outubro. Sex, sáb e dom 19:00
Quanto: R$10
* Rodrigo Monteiro é dono do blog “Crítica Teatral” (clique aqui pra ler) , licenciado em Letras – Português/Inglês pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, bacharel em Comunicação Social – Habilitação Realização Audiovisual, com Especialização em Roteiro e em Direção de Arte pela mesma universidade, e Mestre em Artes Cênicas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor no Curso de Bacharelado em Design da Faculdade SENAI/Cetiqt. Jurado do Prêmio de Teatro da APTR (Associação de Produtores Teatrais do Rio de Janeiro) desde 2012.
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