Crítica Teatral: Rodrigo Monteiro analisa a remontagem de “Godspell” pelos novos talentos do Centro de Estudos e Formação em Teatro Musical


O desafio da convivência entre pessoas tão diferentes em uma mesma sociedade, tema caro para a geração “Glee”, parece ter sido a feliz aposta dessa produção. O maior bem que ela traz à programação teatral carioca, no entanto, não é esse, mas a sugestão de nomes tão talentosos que iniciam suas carreiras

* Por Rodrigo Monteiro

A montagem atual de “Godspell” é a mais fiel versão brasileira do original desde a de Altair Lima, em 1973. O musical, criado por Stephen Schwartz e por John-Michael Tebelak, estreou no circuito Off-Broadway em 1971, recebendo uma adaptação para o cinema dois anos depois dirigida por David Greene. Dividida em dois atos, a história traz, na primeira parte, uma justaposição de diversas parábolas retiradas dos quatro primeiros livros do novo testamento da bíblia (“gospel” é a expressão em inglês correspondente à palavra “evangelho”). Na segunda parte, há a narrativa dos últimos dias de Jesus: ele entre os fariseus, a última ceia, Getsêmani e a crucificação. Dirigida por João Fonseca, com direção de musical de Tony Lucchesi e versões de Bruno Camurati, a montagem é produzida pelo Centro de Estudos e Formação em Teatro Musical (CEFTEM), coordenado por Reiner Tenente. No palco, alunos concluintes do Curso de Prática de Montagem exibem o talento que desenvolveram em sala de aula, alternando-se no elenco semana após semana. Oscar Fabião, Vinicius Teixeira, Léo Bahia, Deborah Marins se destacam, mas Carol Botelho, cuja potência e qualidade vocal são altíssimas, é uma das maiores surpresas da temporada teatral carioca. A peça, que seguirá em cartaz até o fim de agosto, se apresenta somente às quartas-feiras, às 20h, no Teatro Ipanema, na zona sul do Rio de Janeiro. O ingresso é obtido através da doação de um quilo de alimento não perecível que será destinado, pela produção, ao Retiro dos Artistas.

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Inspirado na tese de doutorado de John-Michael Tebelak, a versão final de “Godspell” trouxe consigo apenas a canção “By my side” (“Caminhar com você”, nessa tradução) e a estética associada ao movimento hippie do fim dos anos 60. Seu lançamento em Nova Iorque foi uma resposta comportada ao modo negativo como o filme “O Evangelho Segundo São Mateus” (Pasolini, 1964) e os musicais “Hair” (MacDermot, Rado e Riagni, 1967) e “Jesus Cristo Superstar” (Weber, 1971) estavam sendo vistos em redor do mundo. Ao lado de Tebelak e de Schwartz, o produtor Edgar Lansbury almejava associar a imagem de Cristo à da contracultura, subvertendo a mente reacionária da Guerra Fria em favor das liberdades pelas quais a juventude lutava principalmente desde a primavera de 1968. Muito mais modesto que seus pares, “Godspell” também deu certo talvez porque, naquele momento, foi mais facilmente “engolido” pela família tradicional ainda que esteticamente já era (e continua sendo) considerado bastante inferior.

Vendido na estreia como uma versão musical do evangelho de Mateus, na verdade, sua dramaturgia é composta por situações tiradas de todos os quatro evangelhos. Com curvas narrativas sensíveis demais para de assim serem chamadas, a dramaturgia fura alguns bloqueios da pura catequese com muita delicadeza. Um dos méritos da versão brasileira atual de “Godspell” é justamente a manutenção desses detalhes. Como na produção original, o mesmo ator interpreta João Batista e Judas. Personagens díspares na bíblia e na cultura cristã, esse ponto controverso da peça é um dos meios pelo qual os autores pautam a complexidade do homem real. Na mesma direção, em “Godspell”, é Jesus quem beija Judas e não o contrário como na tradição. Segundo os autores, Jesus perdoa seu traidor por antecipação. Outra questão relevante é a pouca clareza da cena da ressurreição, que não aparece no original tampouco aqui. Para Schwartz, esse musical valoriza o que os discípulos fizeram com o que aprenderam com Jesus mais do que narrativa de sua vida. Geralmente cortada, a cena de abertura (“Tower of Babble” / “Babel”) dava a ver vários filósofos como Sócrates, Tomás de Aquino, Nietzsche, Sartre, entre outros, em meio a uma confusão que só se apaziguava com a entrada de João Bastista, cantando “Prepare ye the way of the Lord” (“Prepare os caminhos do amor” nessa tradução). Na versão que aqui se analisa, no prólogo, os personagens se apresentam, dizendo seus nomes, os quais são os mesmos dos atores que os interpretam, e os modos como se relacionam com a religiosidade. A estética clown/hippie, dos anos 70, deu lugar a uma linguagem mais contemporânea (o que também aconteceu na produção da Broadway mais recente) e o vinho servido ao público no intervalo que acontece aqui também acontecia na versão original.

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Os méritos de João Fonseca na direção desse espetáculo se devem pelo bom estabelecimento de um clima de união entre os componentes do elenco. Em uma entrevista célebre, a cantora americana Nina Simone (1933-2003) diz que a igreja é um grande celeiro de artistas porque lá as pessoas se sentem mais livres para cantar uma vez que não estão agradando primeiramente a si ou aos outros, mas a Deus. Nesse clima inicial, os diferentes talentos do elenco, bem como o modo diverso como os personagens estão apresentados na encenação e a variedade do público se articulam de forma a “preparar os caminhos” para um convívio menos precioso e mais amoroso entre palco e plateia. Sem coreografias complicadas (Victor Maia assistido por Carolina Botelho) e com trocas de cenas fluidas, a direção de João Fonseca (assistido por Gustavo Klein e por Lucas Massano) vence o desafio de uma narrativa tão difícil.

Além de Jesus (Raphael Rossato) e de João Batista / Judas (Oscar Fabião), todos os demais personagens representam a variedade de tipos juvenis, sem definições mais claras. O clima de conflito que poderia dar lugar a uma relação mais harmônica não acontece aqui. Desde a entrada, o público vê os atores se concentrando no palco e identifica marcas de uma relação amena que aparentemente eles têm entre si. Sem qualquer variação dramática, os atores-cantores dão a ver talento para o canto, mas têm quase nenhuma oportunidade de mostrar qualquer técnica interpretativa além de uma representação superficial na viabilização dos personagens das parábolas do primeiro ato. Isso também diz respeito a João Batista / Judas que, apesar de ser o único bom personagem de “Godspell”, é ainda fraquíssimo em relação ao narrador de “Jesus Christ Superstar”. Por isso, no elenco também formado por Raphael Rossato, Alain Catein, Claire Nativel e por Giovana Rangel, destacam-se Oscar Fabião, Vinicius Teixeira, Léo Bahia, Deborah Marins e principalmente Carol Botelho apenas pelo modo como as ótimas e excelentes interpretações das canções também auxiliam na aproximação do palco com o público em alta qualidade estético-musical. Rossato, que interpreta Jesus, aproveita mal as poucas oportunidades que tem de variar dramaticamente seu personagem, mas tem o mérito de construir uma figura carismática que corrobora com essa adocicada dramaturgia. Em boas colaborações, o figurino de Caio Loki, com orientação de Nello Marrese, e a luz de Luiz Paulo Neném são positivos.

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Na história do teatro musical no Brasil, “Godspell” remete a Altair Lima que assinou a primeira produção da peça em São Paulo, em 1973, e no Rio, um ano depois. Naquela montagem, com tradução assinada por Vinícius de Moraes e com coreografias por Clarice Abujamra, Antônio Fagundes interpretava Jesus ao lado de Zezé Motta, Lucélia Santos, Wolf Maia e de vários outros nomes que fizeram parte do elenco nas várias versões que Lima assinou. Em 2002, Miguel Falabella dirigiu uma adaptação com Amanda Costa, Gottsha, Ivan Parente, Pedro Lima e com outros com direção musical de Josimar Carneiro. No ano passado, em Porto Alegre, Zé Adão Barbosa levou “Godspell” à cena com Álvaro RosaCosta, Lúcia Bendati, Marisa Rotenberg, Cíntia Ferrer e outros com direção musical de Everton Rodrigues. Todas essas produções passaram pela pergunta: qual é o lugar de “Godspell” hoje?

É bem verdade que canções, como “All for the best” (“Só pro melhor”) e principalmente “Day by day” (“Sem cessar”) são tão belas que se tornaram famosas para além da produção, mas, por outro lado, a contracultura já morreu, (aquel)as liberdades sexuais pelas quais se lutava já foram relativamente conquistadas e qualquer coisa relacionada a Jesus, hoje em dia, cheira a evangélicos que, injusta e infelizmente, são associados a crápulas como Silas Malafaia, Marco Feliciano e Eduardo Cunha. O desafio da convivência entre pessoas tão diferentes em uma mesma sociedade, tema caro para a geração “Glee”, parece ter sido a feliz aposta dessa produção. O maior bem que ela traz à programação teatral carioca, no entanto, não é esse, mas a sugestão de nomes tão talentosos que hora iniciam suas carreiras, mas oxalá essas tenham vidas bem longas.

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Ficha técnica:
Um musical de Stephen Swartz e de John-Michael Tebelak
Direção: João Fonseca
Direção Musical: Tony Lucchesi
Coreografia: Victor Maia
Coordenação Pedagógica: Reiner Tenente
Assistente de Direção: Gustavo Klein e Lucas Massano
Assistente de Coreografia: Carolina Botelho
Iluminação: Luiz Paulo Neném
Assistentes: Paulo Coquito e Stacey Maika
Canhão: Bruna Leal
Figurino: Caio Loki
Orientação de Figurino: Nello Marrese
Assistente: Clara Equi
Comunicação Visual: Caio Loki
Design de Som: Raul Ribeiro
Assistentes: João Canedo e João AciolyArranjos instrumentais e adaptações e arranjos vocais adicionais: Alexandre Queiroz e Tony Lucchesi
Pianistas ensaiadores: Alexandre Queiroz e Gabriela Alkmim
Preparação Vocal: Tony Lucchesi

Banda:
Teclado 1 e regência: Alexandre Queiroz
Teclado 2 e regência: Tony Lucchesi
Teclado 2: Gabriela Alkmim
Guitarra e violão: Pedro Mota
Baixo: Alana Alberg
Bateria 1ª temporada: Léo Bandeira
Bateria 2ª temporada: André Guerra

Versões: Bruno Camurati (exceto “Tanto para agradecer”, de Miguel Falabella; e “Aprenda essa lição”, de Vinícius de Moraes, com adaptação de Bruno Fraga)
Composições adicionais: “Samba do devedor” (adaptação do samba enredo da Vila Isabel, de 1971) do elenco e da direção; e “Repente do Lázaro”, de Joana Mendes.

Elenco:
Raphael Rossato, Oscar Fabião, Carol Botelho, Alain Catein, Léo Bahia, Vinicius Teixeira, Claire Nativel, Laura Zenet, Deborah Marins e Giovana Rangel alternando com Bruno Fraga, Lyv Ziese, Analu Pimenta, Diana Cataldo, Bernando Dugin, Ingrid Gaigher, Erick de Luca, Ugo Capelli, João Telles e Joana Mendes.

Fotos: Mariana Moreira
Assessoria de Imprensa: Otávio Furtado
Assistente de Direção Musical: Alexandre Queiroz
Assistência de Produção: Victória Guedes
Produção Executiva: João Canedo e Joana Mendes
Realização e Produção Geral: Reiner Tenente e João Fonseca
Realização: CEFTEM e João Fonseca

*Serviço:

Onde: Teatro Ipanema — Rua Prudente de Morais 824 (2523-9794)
Quando: Quartas, às 20h. Até 29/7.
Quanto: 1kg de alimento.
Classificação: Livre

* Rodrigo Monteiro é dono do blog “Crítica Teatral” (clique aqui pra ler) , licenciado em Letras – Português/Inglês pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, bacharel em Comunicação Social – Habilitação Realização Audiovisual, com Especialização em Roteiro e em Direção de Arte pela mesma universidade, e Mestre em Artes Cênicas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor no Curso de Bacharelado em Design da Faculdade SENAI/Cetiqt. Jurado do Prêmio de Teatro da APTR (Associação de Produtores Teatrais do Rio de Janeiro) desde 2012.