“O corpo da mulher como campo de batalha” é o novo espetáculo escrito pelo romeno Matéi Visniec em cartaz no Rio de Janeiro. Na história, uma mulher bósnia e outra americana se encontram em um hospital na Alemanha onde uma delas está internada. O diálogo trata de uma das últimas guerras nos Balcãs como abordagem para agressões contra as mulheres, mas também para a luta política, religiosa e ideológica por poder. Com Ester Jablonski e Fernanda Nobre (leia aqui nosso papo com ela) no elenco, em que a primeira brilha em ótimo trabalho, a montagem apresenta problemas na direção de Fernando Philbert. Essa primeira temporada vai até 19 de junho. Imperdível!
“A mulher como campo de batalha ou Do sexo da mulher como campo de batalha na Guerra da Bósnia” foi escrito em 1996 e estreou em Avignon, na França, um ano depois. No texto, Matéi Visniec incluiu um fato histórico que estava quente na Europa: um dos vários conflitos na região dos Balcãs, no Leste Europeu.
A Guerra da Bósnia (1992-1995) foi a luta de um povo por sua independência. Com o fim da antiga Iugoslávia, várias comunidades começaram a redefinir o tamanho de seu território: a Croácia, a Eslovênia, a Macedônia, Montenegro e a Sérvia entre elas. Dessa última, a Bósnia e a Herzegovina (que se uniram em um só país) se separaram. Recentemente, Kosovo também luta por isso (o Brasil está entre os países que não reconheceram sua independência ainda). Na região, cristãos ortodoxos, católicos romanos e muçulmanos principalmente brigam pela hegemonia religiosa em um conflito que remonta a Idade Média. Cultura, identidade e ideologia são questões que atravessam a política, a economia e a religião em um território que, no total, tem menos da metade do Estado de São Paulo.
Dorra (Fernanda Nobre) e Kate (Ester Jablonski) são duas mulheres diretamente envolvidas com esses conflitos. A primeira personagem foi estuprada por cinco homens em meio à guerra. A segunda é uma psicóloga que, depois de muito colaborar com a identificação de cadáveres encontrados em valas comuns, solicitou desvio de função. O encontro entre elas se dá em um hospital na divisa entre a Alemanha e a Suíça, próxima ao Lago de Constança.
Como se vê, limites territoriais e fronteiras culturais são pontos de partida para o diálogo entre as duas personagens. Através delas, Visniec convoca para reflexões obrigatórias no complexo mundo contemporâneo: o corpo como pátria, a identidade como bandeira e a vida como religião. Por outro lado, o dramaturgo aponta o estupro como marca indelével de poder em que homens avisam para outros sobre sua superioridade. Nisso, até mesmo os ora perdedores se consideram acima das mulheres. No Brasil, esse quadro ganhou recentemente importância com o terrível caso do estupro coletivo ocorrido com uma jovem de 16 anos em uma comunidade da zona oeste do Rio de Janeiro.
Mas há ainda outra questão no texto de Visniec. Durante boa parte da peça, Dorra teme estar sendo estuprada novamente por Kate: o leste avançando culturalmente sobre o oeste com seus valores, suas técnicas, suas normas. Kate precisa de Dorra assim como os Estados Unidos precisam dos países mais suscetíveis. Como ser líder se não houver quem liderar?
Traduzido por Alexandre David, o texto de “O corpo da mulher como campo de batalha” sofreu vários cortes e adaptações. Claramente, essas ações tiveram como objetivo aproximar a narrativa do público brasileiro, privilegiando os contornos da história em detrimento da verborragia reflexiva do dramaturgo romeno nesse trabalho. De fato, o Brasil não está familiarizado com questões relativas a revoltas de independência. No século XIX, o Rio Grande do Sul ficou nove anos separado do Brasil (1936-1845), mas, depois de uma inexpressiva tentativa do Amapá de se tornar um país independente, em 1902, nosso país nunca mais viveu conflito parecido.
No entanto, problemas na concepção da direção da peça trouxeram dificuldades ao equilíbrio entre essas transformações na dramaturgia e o corte final do espetáculo.
O maior problema da direção de Fernando Philbert está na escolha pelo palco em galeria para encenar esse texto de Visniec. Nesse modelo, o público assiste à peça, mas também assiste à plateia sentada do outro lado do espaço cênico, o que exige a ativação de uma postura mais reflexiva e racional. Isso prejudica o envolvimento, que já é, nessa narrativa, complicado. Há que se considerar que essa dramaturgia demora para deixar claros quem são as personagens e em que momento elas se encontram além da já referida distância do contexto histórico da Bósnia em relação ao Brasil.
Há ainda o modo como Philbert articula as cenas. Ester Jablonski (Kate) e Fernanda Nobre (Dorra) não saem do campo de visão do espectador durante toda a encenação. Quando elas não ocupam a cena propriamente dita, ficam sentadas, visíveis em um canto. Essa opção também emperra o diálogo entre o público e a peça, pois o primeiro precisa, de início, compreender a linguagem do espetáculo para só então fruí-lo a contento. A responsabilidade de uma pequena pedra, posta a um canto sob um foco da luz de Vilmar Olos, em representar toda a Península dos Balcãs e a dureza da vida daquele povo é absolutamente ingrata.
Por fim, o espaço cênico não é exatamente delimitado. No cenário de Natália Lana, há um corredor marcado no chão do palco que, se inicialmente parece contribuir de algum modo com o sentido da estrutura narrativa, logo abandona essa possibilidade. Uma cadeira Sofia de prolipopileno serve de cama, um espelho de janela. No figurino – também de Lana – Kate usa sandálias e uma pashmina enquanto Dorra veste algo que demora para ser identificado também. Ou seja, se a peça adapta o texto para facilitá-lo, é incoerente oferecer uma encenação difícil.
Fernanda Nobre (Dorra) se movimenta bem nos momentos mais fortes do texto, mas, nos níveis medianos, imprime um melodia monótona pelo excesso de constância nas falas. Ester Jablonski (Kate), em ótimo trabalho de interpretação, colore cada trecho do diálogo, alternando frieza e emoção com o segundo em privilégio nos momentos finais. As oportunidades para jogo entre as duas atrizes são melhores aproveitadas na conclusão em coerência com a dramaturgia original, o que é positivo. É bonito perceber como a dureza da paisagem que as duas personagens têm sobre suas realidades está impressa nas feições das atrizes. Tratam-se de personagens que a humanidade, da qual todos nós fazemos parte, machucou. Esse movimento também é perceptível pela trilha sonora original de Tato Taborda positivamente.
Em “O corpo da mulher como campo de batalha”, a humanidade vai à falência, mas também renasce em uma espécie de otimismo crítico de Matéi Visniec. Depois de contemplar o horror, o público ganha uma oportunidade para continuar acreditando na vida, embora reconheça que é necessário dar a ela melhores condições. Eis um espetáculo que, apesar de alguns problemas, merece ser visto!
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Ficha Técnica:
Texto: Matei Visniec
Tradução: Alexandre David
Direção: Fernando Philbert
Elenco: Ester Jablonski e Fernanda Nobre
Iluminação: Vilmar Olos
Cenário e Figurino: Natália Lana
Trilha / Música Original: Tato Taborda
Direção de Movimento: Marina Salomon
Direção de Produção: Sergio Canizio
Realização: Jablonsky Produções Artísticas Ltda
Assessoria de Imprensa: Lu Nabuco Assessoria em Comunicação
Coordenação dos debates: Adriana Novis Leite Pinto
Serviço:
Onde: Sesc Copacabana
Quando: Quinta-Feira a Sábado, 19h; Domingo, 18h
Quanto: : R$ 5 (associados Sesc), R$ 10 (meia entrada) e R$ 20
* Rodrigo Monteiro é dono do blog “Crítica Teatral” (clique aqui pra ler) , licenciado em Letras – Português/Inglês pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, bacharel em Comunicação Social – Habilitação Realização Audiovisual, com Especialização em Roteiro e em Direção de Arte pela mesma universidade, e Mestre em Artes Cênicas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor no Curso de Bacharelado em Design da Faculdade SENAI/Cetiqt. Jurado do Prêmio de Teatro da APTR (Associação de Produtores Teatrais do Rio de Janeiro) desde 2012.
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