Todo mundo sabe que texto de Nelson Rodrigues é sinônimo de polêmica e ‘A Serpente’ não poderia ser diferente. Considerado a última obra do escritor, o roteiro chocou o público, em 1978, por retratar o amor de duas irmãs pelo mesmo homem e por uma delas consentir que o marido se relacione com a outra. No entanto, o que se tornou motivo de espanto no passado, atualmente já não causa mais o mesmo efeito. Exatamente por isso que os diretores Eric Lenate e Erica Montanheiro resolveram apimentar ainda mais o texto e transformar a sua montagem em algo único e inédito. Em cartaz no CCBB até dia 3 de setembro, o espetáculo traz uma nova visão sob a obra de Nelson na qual a força e a sororidade feminina ganham o protagonismo. “Tentei trazer mais esta peça para os dias atuais”, afirmou Eric Lenate. A competição entre mulheres, exposta em outras versões, foi totalmente descartada pela equipe visando criar um produto teatral que vai de encontro com a atualidade do movimento feminista.
Na trama, duas irmãs muito próximas dividem o mesmo apartamento com os respectivos maridos. Enquanto Guida, interpretada por Fernanda Heras, parece feliz em seu casamento, a Lígia, vivida por Carolina Lopez, não consegue consumar a relação. Movida pela infelicidade, a segunda resolve se suicidar, mas, na tentativa de impedir a morte, a outra irmã decide oferecer o próprio esposo por uma noite. O que ninguém esperava era que Lígia se interessaria pelo rapaz. O enredo por si só já induz certa rivalidade entre ambas, mas a ideia dos diretores era mostrar como o amor pode vencer estas barreiras. “Não são duas mulheres loucas e desesperadas. Na verdade, tentamos trabalhar a união das forças femininas dentro deste espetáculo. Existia um amor tão forte entre as duas que seria até natural uma oferecer o marido para outra, visando amenizar a dor da outra”, explicou Eric. A partir do momento que o rapaz é oferecido, ele acaba se tornando uma terceira pessoa nesta relação fraternal. Na peça original, ele era pintado como um cafajeste que tentava tirar proveito da situação, mas, dessa vez, é apenas um homem confuso.
A direção é um espetáculo à parte nesta montagem, mas é claro que o resultado final não seria possível sem um estudo detalhado do texto e muitos ensaios. O roteiro continua exatamente o mesmo da obra original, de acordo com o diretor, mas para reforçar esta aliança feminina foi necessário usar alguns sinônimos. “Isto reforçou as intenções de cena. Ao mesmo tempo, muitas vezes o personagem dizia uma coisa e o seu corpo falava o contrário. Trabalhamos com contrastes para conseguir mostrar possíveis outras camadas que conseguimos enxergar”, elencou. Apesar de algumas poucas palavras terem mudado, não foi preciso atualizar a prosódia ou determinadas passagens, pois, segundo Eric, existe um ar de imortalidade nas palavras de Nelson Rodrigues o que mantém o seu caráter atemporal.
Além de deixar de lado a competição feminina, existe outra possível característica desta peça que foi excluída desta montagem: o racismo. Na obra, o marido que não consegue consumar o seu casamento acaba se relacionando sexualmente com a mulher que trabalhava na casa como lavadeira. “Geralmente, a relação que o homem estabelece com a empregada negra seria apenas uma troca de favores sexuais. Mas, neste espetáculo, nós criamos um sentimento de carinho e respeito entre os dois. Nós mantivemos o texto, mas trocamos a entonação”, exemplificou. Sendo assim, a personagem não fica em um debate raso de personificação da sexualidade, na verdade acaba ganhando uma presença maior e significativa. “Ela ainda torce pelas irmãs! O trio feminino deste espetáculo é muito forte, como acontece hoje em dia: as mulheres fortes e os homens patéticos”, brincou o diretor.
‘A Serpente’ é considerada a última obra de Nelson Rodrigues e, por isso, a mais curta e questionadora. Neste espetáculo, podemos ver uma situação sendo denunciada e uma nova sociedade nascendo. “Espero que as pessoas vejam esta peça como uma nova proposta de relacionamento amoroso, porque dizem que Nelson queria mesmo trazer este poliamor. Talvez, este espetáculo queria chamar atenção para novas formas de amor e de sociedade. Até porque se a gente não conseguir bancar isto, vamos terminar em uma grande tragédia, como antecipa a trama”, analisou o diretor. A ideia, de acordo com Eric, é que a trama termina de forma ruim porque os personagens não souberam lidar com o que estava acontecendo e, por isso, a situação se tornou insustentável. No entanto, se eles tivessem compreendido a narrativa poderia ter terminado de outra forma.
Não é a primeira vez que Eric Lenate comanda um texto de Nelson Rodrigues. Na verdade, o diretor já foi responsável por montar outros dois. Mas, neste caso, Serpente apareceu de uma forma inusitada através de um convite das produtoras – e também atrizes da peça – Carolina Lopez e Fernanda Heras, que idealizaram esta versão, a ele e sua parceira Erica Montanheiro. “Foi uma responsabilidade por ser o último texto e o mais enigmático. Ao mesmo tempo, nós tivemos a mesma ideia que a Carolina de puxar o espetáculo para o lado da parceria destas duas irmãs”, relembrou.
Caso esta peça não acontecesse, já havia uma vontade dele em fazer outra trama do autor, pois, segundo o mesmo, Nelson tem ainda muita coisa para falar com sua literatura atemporal. “Temos muitas mudanças boas e necessárias acontecendo e, ao mesmo tempo, um retrocesso e uma mentalidade que bate de frente com esta evolução. Não sei como ficará a nossa realidade se o Jair Bolsonaro for eleito, por exemplo. Sou uma pessoa criativa, mas não sei mesmo como a nossa mentalidade seria afetada. Acho que, se ainda estivesse vivo, ele falaria: ‘humanos não enlouqueçam’”, afirmou.
O espetáculo fica em cartaz até o dia 3 de setembro no CCBB do Rio de Janeiro e, acordo com o próprio diretor, é necessário ouvir o Nelson tem a dizer devido o caráter obscuro de sua obra. Já que, de acordo com Eric, as palavras do autor são sempre necessárias por ir de encontro com a miséria intelectual das pessoas. “Somos a imperfeição por excelência”, afirmou.
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