Com homenagens à Ruth de Souza e Eva Wilma, Prêmio Cesgranrio de Teatro é embalado pela luta contra o racismo


Nomes como Marieta Severo, Armando Babaioff e Fábio Assunção falaram sobre a questão do racismo que ainda permeia a sociedade corroborando com o ponto de vista abordado pelos mestres-de-cerimônias da noite, os atores Lázaro Ramos e Zezé Motta

*Por Thaissa Barzellai

A classe artística entrou em cena na noite desta terça-feira, dia 28, para prestigiar a sétima edição do Prêmio Cesgranrio de Teatro, realizada no Belmond Copacabana Palace com o roteiro afinado em discursos defensores do teatro brasileiro e do seu legado, principalmente com relação às conquistas sociais de movimentos como o negro. Com a presença de nomes de diferentes gerações, como Marieta Severo, Nicette Bruno, Guida Viana, Armando Babaioff, Bel Kutner e Fábio Assunção, a noite, comandada pela sintonia para além do telepronter entre os atores Zezé Motta e Lázaro Ramos, ainda homenageou as atrizes Eva Wilma, Ruth de Souza (1921-2019) e Bibi Ferreira (1922-2019) pela contribuição às artes. Confira a cobertura exclusiva do Site HT. 

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Quando as primeiras notas da canção “Apesar de Você”, de Chico Buarque, tocaram na apresentação de abertura da festa da premiação já era de se esperar que seria uma noite necessária pelo o que seria dito e visto dali em diante. Contra o eco das más línguas que insistem em dizer que a arte de fazer teatro está prestes a ser extinguida, a classe artística, passou a marcha e seguiu do único jeito que ela sempre soube: rumo à união de todos e da valorização da diversidade representativa e liberta que carrega uma extrema atuação política e social. “Hoje a maior alegria é celebrar todos os colegas que conseguiram colocar suas ideias, seus sonhos, seus desejos teatrais em cena com tanto brilho. Nesta noite, todos eles são premiados, pois tivemos muitas dificuldades não só de patrocínio, mas também de respeito à nossa profissão, ao que nós significamos  e a cultura do país. Somos todos vitoriosos”, declarou Marieta Severo em bate-papo exclusivo. 

Era como se esta noite tivesse sendo uma apresentação de uma peça antropofágica, de resgate do que carrega em si a brasilidade plural e histórica da cultura. Nos salões do Copa, se havia algum artista que não estivesse pronto para defender a sua classe em discursos à la Grécia antiga na Polis não se manifestou. Entre um troféu e outro, as pautas atuais não ficaram do lado de fora e assuntos como planos de governo, iniciativas públicas – ou falta delas – e perdas de patrimônios foram refletidos e discutidos a todo tempo. Com dois prêmios na bagagem, Armando Babaioff, que acabou de viver o vilão Diogo em “Bom Sucesso”, uma novela cujo cerne era de puro incentivo ao apreço pela literatura e arte, fez questão de reforçar essa atitude coletiva. “Nós vamos produzir mais e mais, porque a liberdade, beleza, poesia e arte incomodam. E é exatamente nisso que a gente vai tocar, chegando nas pessoas”, afirmou. 

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Essa união tem se transformado em uma grande força tarefa com uma atuação para além dos viéis tradicionais da arte. É preciso ir além e compreender o território como um todo, os desnivelamentos e disposição do Estado. Embora muitos parceiros de profissão não estejam alheios ao funcionamento de tudo, até por questão de sobrevivência, Bel Kutner, vencedora da noite na categoria especial, é uma das que tem propriedade para falar após trabalhar por três anos como Diretora Artística na Cidade das Artes. “Cada um tem que dar à sua maneira o tempo e dedicação para pensar no interesse público, na nossa formação cultural. Então, nada melhor do que estar dentro e entender como a máquina funciona, porque existem regras e uma história”, reflete. 

Esse resgate do tempo não ficou somente sob a esfera administrativa da cultura. Em noite de homenagens a grandes nomes das artes cênicas, como Bibi Ferreira (1922-2019), Ruth de Souza (1921-2019) e Eva Wilma, diferentes gerações de artistas encontraram mais um ponto em comum na luta: o de valorizar os que vieram antes, principalmente as mulheres, e pavimentaram uma boa parte do caminho para que a trupe passasse. “Nós não fazemos ideia do que essas duas já passaram por serem mulheres. Encontramos um caminho muito mastigado, então temos muito o que agradecer. Infelizmente, não tenho currículo com elas, mas é emocionante saber que pisei no mesmo planeta que essas duas mulheres. Memória só engrandece a gente”, emociona Babaioff. 

Daqueles que aprendem ao observar, Armando Babaioff ainda fez questão de frisar a importância de inserir os veteranos atores novamente no mercado, traçando uma relação com os que estão apenas começando a engatinhar no mundo artístico. “Nós precisamos enaltecer os nossos atores mais velhos, precisamos colocar essas pessoas de volta ao mercado de trabalho, precisamos pensar em personagens e lugares. Não nascemos sozinhos e não estamos sozinhos nesse mundo. A classe precisa se unir e essa união começa nos primeiros passos do tablado”, completa. Assim como o intérprete de Diogo, Guida Viana e Luís Lobianco reforçaram essa valorização da memória. “Eu admiro muitíssimo a geração de todos os que desbravaram o teatro no Brasil, lutaram por ele, e a nós só restou continuar essa caminhada”, diz Guida, que foi vencedora em 2018 pelo papel em “Agosto”. 

A memória afetiva de nomes do teatro não foi assunto apenas entre os convidados. No palco, ela foi tema, fomentando ainda mais a ideia de que o passado não pode ser esquecido. Durante a homenagem póstuma à dama Ruth de Souza, Lázaro Ramos e Zezé Motta relembraram da potência que foi ter uma mulher negra com o desejo de ser atriz, a ponto de ser a primeira a levar o trabalho brasileiro mundo afora com uma indicação ao Festival de Veneza em 1954 pela atuação em Sinhá Moça. “Quem ousou ser a primeira tem que ser reverenciada. Ela teve força, valentia, e foi tão atrevida que Ruth mudou a história dos palcos e da televisão no Brasil. A palavra impossível foi abolida do nosso presente definitivamente graças a você. Obrigada, Ruthinha”, exclamou emocionada Zezé, que também carrega o título de uma das principais personalidades a lutar contra o racismo e desigualdade para com os negros. 

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À frente de iniciativas que abrem portas a jovens negros, gerando uma inserção social cada vez mais, Zezé Motta sabe que tudo poderia ter sido diferente para ela caso não houvesse tido uma Ruth de Souza que não tinha vergonha de ser ousada. Hoje, se foi possível ver em uma premiação não só com Zezé Motta, como também com outras jovens atrizes negras, que estavam indicadas, inclusive, em diversas categorias da noite, é por causa da da dama Ruth de Souza. “Como foi importante ver ela levando seu talento por esse país equivocado… Ruth, foi graças a você, que eu entendi que também podia brilhar. Um brilho que ninguém tira de mim e que foi inspirado em você”, completou. 

Amigo e quase filho de Ruth, Lázaro, assim como Zezé, não conteve a saudade e se emocionou ao lembrar da atriz que ele carinhosamente chama de Ruthinha. Ele lembrou que teve momentos pessoais com a atriz, tendo ido diversas vezes à sua casa para estudar, ser aconselhado e acolhido por Ruth. “Ser ator negro nesse país era quase impensável. Saudade das suas palavras de incentivo, da sua sensibilidade única, do seu olhar poderoso. A gente sente falta do seu exemplo de dedicação no estudo dos seus personagens. Você foi, é e sempre será um exemplo para todos nós. À essa grande dama dos palcos e da televisão, o nosso mais sincero agradecimento que apesar de enorme jamais fará jus ao tamanho do seu legado”, pontuou. 

O canto de Ruth segue sendo ouvido e a luta que era seleta hoje é abraçada por uma grande maioria que carrega a empatia pelo outro. Fábio Assunção, por exemplo, convidado para apresentar um dos prêmios, não hesitou ao usar o palco para criticar aqueles que seguem cometendo um dos maiores crimes humanos: o racismo. “É absolutamente repulsivo qualquer atitude racista nesse país. Eu expresso meu profundo respeito não só às pessoas que lutaram contra isso, como Lázaro, Zezé, Ruth e tantos outros. Só queria expressar minha repulsa, pois estamos juntos”, afirmou. Assim como Ruth de Souza, Eva Wilma foi de extrema contribuição para o a força do teatro na sociedade brasileira desde os primeiros passos que deu nos anos 50.

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Estrela do imaginário popular, muito por conta dos seus papéis em televisão, Wilma, um dos nomes mais importantes no período de fundação do teatro de Arena, nos seus 60 anos de carreira transitou entre o clássico e a vanguarda, explorando facetas que renderam grandiosas interpretações nas telas e nos palcos. A tendência da arte de representar é sim uma que tem que se exibir, se apresentar e estudar, voltada para o conteúdo. Mas, acima de tudo isso, tem que ter consciência social e muito amor pelo público nessa vontade de se apresentar e se doar”, comentou Eva que durante o discurso de agradecimento brincou que estava tão nervosa quanto no primeiro baile de formatura no primário. Amigos como Andrea Beltrão e Nicette Bruno também fizeram questão de relembrar a trajetória da atriz com lembranças pessoais. “Te acompanho desde a sua estreia, tão jovem. Desde esse momento dissemos logo “vai longe essa menina, que talento”. Sempre tivemos uma sintonia cênica grandiosa e ficamos além de colegas, ficamos amigas, amigas-irmãs. Parabéns por tudo o que já realizou e que você ainda tenha muita alegria e realizações positivas para alegrar o mundo imenso de seus fãs, eu me incluo entre eles”, disse Nicette. 

Eva Wilma ainda aproveitou, em meio a anedotas carinhosas da relação que construiu com gigantes da arte, para reafirmar a importância da defesa da cultura brasileira e dos nomes que estão por trás de toda a indústria. “Bibi Ferreira uma vez me convidou para ir com ela à inauguração de um teatro no Rio Grande do Norte. Ela tinha que dar três batidas de Molière para abrir as portas e isso me fez aprender que as portas de um teatro nunca podem se fechar. Por isso, Cesgranrio tem que continuar lutando, assim como o Casa Grande e tantos outros”, completou. 

É inadmissível pensar em um mundo no qual portas abertas por pessoas como as homenageadas da noite e que levam a momentos ricos do país sejam fechadas. Não é porque o mundo gira que o ser humano precisa ser inerte. Afinal, a luta do teatro nunca foi por só ele mesmo, mas, sim, pela humanidade. 

A peça ‘As Crianças’ faturou três prêmios, incluindo o de Melhor Espetáculo, e ‘A Cor Púrpura – O Musical’ também ganhou três troféus, incluindo o de Melhor Atriz em Musical (Letícia Soares).

Conheça os vencedores:

Melhor Figurino

Marcelo Marques por “Cole Porter – Ele Nunca Disse Que Me Amava” e por “O Despertar da Primavera”

Melhor Cenografia

Bia Junqueira por “Eu, Moby Dick”

Melhor Iluminação

Rogério Wiltgen por “A Cor Púrpura – O Musical”

Melhor Ator

Leonardo Netto por “3 Maneiras de Tocar no Assunto”

Melhor Ator em Teatro Musical

Patrick Amstalden por “Ao Som de Raul Seixas ‘Merlin e Arthur, Um Sonho de Liberdade’”

Categoria Especial

Bel Kutner pela direção artística da Cidade das Artes e Marcia Rubim pela direção de movimento de “3 Maneiras de Tocar no Assunto”

Melhor Atriz

Analu Prestes por “As Crianças”

Melhor Atriz em Musical

Letícia Soares por “A Cor Púrpura – O Musical”

Melhor Texto Nacional Inédito

Leonardo Netto por “3 Maneiras de Tocar no Assunto”

Melhor Direção Musical

Tony Lucchesi por “A Cor Púrpura – O Musical”

Melhor Direção

Rodrigo Portella por “As Crianças”

Melhor Espetáculo

“As Crianças”