Com a história de uma refugiada bósnia vítima de estupro, “O corpo da mulher como campo de batalha” levanta questões atuais do Brasil


No palco, Ester Jablonski e Fernanda Nobre, dirigidas por Fernando Philbert, vivem duas mulheres que sofrem dores muito diferentes, mas suas questões se encaixam. “ São duas condições que, metaforicamente, têm relação. Uma acaba se transformando um pouco na outra, é o espelho da outra, isso vai sendo construído ao longo da peça, uma construção teatral moderna”

O espetáculo “Casa de bonecas”, do qual falamos aqui, faz parte da programação do evento “Mulheres em Cena: corpo e violência”, aberto no dia 24 de maio e que, até o dia 26, estará no Sesc Copacabana reunindo uma série de debates, filmes, peças, instalações e um livro sobre a atual condição da mulher. A peça que abriu o evento foi “O corpo da mulher como campo de batalha”, um texto de Matéi Visniec que levou Ester Jablonski e Fernanda Nobre ao palco, dirigidas por Fernando Philbert. Ester, que, além de integrar o elenco é parte integrante da produção, contou que a ideia da ocupação do Sesc surgiu depois da peça. “Eu e o Fernando tínhamos esse projeto conjunto e acabou que avancei um pouco na questão da programação, aumentei tudo para caber na história. O autor Matéi Visniec me interessou porque eu vi que sua trama tinha um diálogo enorme com tudo o que vivemos no mundo e no nosso país”, explicou.

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Ester Jablonski e Fernanda Nobre (Foto: Divulgação/Ana Alexandrino)

Se o pano de fundo da história é a guerra da Bósnia, as questões se encaixam perfeitamente com o Brasil hoje. “A peça fala da miséria humana, da atrocidade cometida em nome de princípios radicais, de atitudes que só o homem tem: matar por matar, por vingança, estupro por submissão. O texto também traz a questão do aborto, mas é tudo de forma bonita, poética… não posso dizer otimista, obviamente, mas mostra uma escolha pela vida apesar de todas as tragédias. Achei que tinha o que acrescentar no momento em que estamos”, disse Ester, endossada por Fernanda. “É um texto extremamente político. Tem a vertente da intolerância étnica na guerra da Bósnia e não há nada mais atual do que isso, já que estamos tendo uma crise migratória no mundo e mesmo no Brasil, um país extremamente racista, precisamos falar sobre isso. A outra questão é a violência feminina que agora explodiu mais do que nunca. São duas questões politicas em um texto. Eu tenho o que dizer para o público além de só entretenimento. A arte tem essa responsabilidade política, é educação, é a forma que tenho de me posicionar para o mundo”, defendeu.

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Fernanda Nobre vive uma refugiada bósnia (Foto: Divulgação/Ana Alexandrino)

Sua Dorra é uma refugiada bosnia vítima de estupro e Fernanda garantiu: a construção foi intensa e dolorosa. “Primeiro estudei profundamente essa guerra que foi ‘ontem’, na década de 90, mas, com a velocidade em que vivemos, vamos esquecendo. Graças a Deus, nunca vivi violência sexual, mas mergulhei fundo nessa história, comecei a ler muitos casos e buscar o que seria essa dor em mim, mas claro que não chega nem perto da dor real. Foi uma busca incansável e a recepção do público tem sido muito forte, o que faz com que o trabalho faça sentido”, contou. A montagem, que estreou no dia em que caiu na mídia a história de um estupro coletivo sofrido por uma adolescente, ajudou ainda mais no diálogo ao deflagrar um grito sobre a condição da mulher durante a guerra, quando o estupro era a tática mais utilizada para humilhar e derrotar o inimigo de ambos os lados.

“Ensaiei o espetáculo por dois meses e meio e ele estreou no dia do caso, foi uma coincidência muito trágica. É a primeira vez que me sinto no palco falando algo que realmente quero dizer para o público e o caso criou um sentido ainda maior, porque está muito próximo. A estreia foi muito bonita, foi uma catarse coletiva e eu me sinto profundamente, como artista e ser político, honrada de estar falando sobre isso agora, fazer com que as pessoas pensem sobre isso. Precisamos conversar sobre a cultura do estupro, vivemos em um país extremamente machista que coloca a mulher nesse lugar secundário. Nosso corpo é violado diariamente, não só sexualmente, por leis que não nos defendem, pelo aborto que não é legalizado”, disse ela, que, no palco, fala de uma mulher estuprada por cinco homens. “Ela é violada duas vezes, porque esse corpo é de todos, menos dela. A peça é da Bósnia, da guerra, da década de 90, mas falamos daqui, de hoje. A Bósnia nunca esteve tão presente no Brasil”, analisou.

Ester, que vive Kate, uma terapeuta que tenta ajudar essa refugiada e acaba se deparando com suas próprias questões, contou que seu processo também foi dolorido. “Na verdade são duas mulheres que, por razões distintas, estão ali em uma sintonia de drama. A minha personagem, apesar de ter vindo de um lugar desenvolvido, escolheu trabalhar de voluntária com misérias humanas porque algo dentro dela também está vazio e ela sofre. Costumamos dizer que uma é estuprada pela guerra e outra pela vida, que a violência é tamanha que é um estupro também, conviver com aquela desgraça. São duas condições que, metaforicamente, tem relação. Uma acaba se transformando um pouco na outra, é o espelho da outra, isso vai sendo construído ao longo da peça, uma construção teatral moderna”, contou.

E Ester sabe, “O corpo de mulher como campo de batalha” ainda é uma realidade. “A guerra na Bósnia foi primeiro grande genocídio, depois da Segunda Guerra Mundial, reconhecido pela ONU. Mataram mais de 8 mil homens em 15 dias, houve estupro de 3 mil mulheres, 300 bebês nasceram da guerra. Aconteceu só há 20 anos em plena Europa desenvolvida. É chocante. Junto com isso veio o reconhecimento de que havia o uso da mulher como elemento de dominação no mundo moderno. A submissão da mulher do inimigo para humilhá-lo é uma violência por todos os motivos. É um pouco como acontece com as gangues de favelas. É uma tese, o corpo da mulher como arma de guerra, não precisa matar, basta estuprar para arrasar uma comunidade inteira”, analisou ela, que comparou a história com o caso recente da menina estuprada. “Soubemos da situação próximo do horário da estreia e ficamos muito mobilizados, discutimos de que forma lidaríamos com isso naquele dia, desde fazer um discurso no final a outros movimentos, mas chegamos à conclusão de que a própria peça é nossa resposta. Saímos de um terreno especifico e jogamos para o universal, que atinge todo mundo. Nosso papel ali era fazer o espetáculo e, com isso, estamos abrindo muitas discussões. Estamos felizes de estar fazendo isso justo agora. O texto fala da questão do sofrimento, humilhação. Independente do caso específico dessa moça, que é só a representante de tantas outras, poder compartilhar o sentimento, a emoção com relação ao estupro, engravidar do estupro, a decisão que toma, é incrível”, declarou ela.

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Fernanda e Ester em cena (Foto: Divulgação/Ana Alexandrino)

Apesar do assunto forte, a peça é um “chamado para a vida”, de acordo com Ester. “E é o que queremos dizer para as pessoas. Por pior que a gente esteja, a escolha tem que ser pela vida, pela fala, não é grito, é falar do assunto. Homens que acham que ser macho é sair fazendo isso tem que vivenciar essa peça. Se colocar no papel do outro – que não conseguimos fazer quando ficamos na internet gritando, fica briga de time de futebol, uma dicotomia. A ideia é se colocar no lugar do outro. Isso é a arte, o discurso”, explicou.

Afinal, Ester, qual o papel do feminismo nos dias atuais? “É um assunto complicado, porque não sei direito o que é feminismo. Tem muita coisa envolvida, misturada. Os homens não sabem mais como tem que ser, tudo é machista. A importância é o tema abrir discussão, ser ventilado. Acredito muito na força da palavra, não no discurso e levantamento de bandeira, mas a discussão verdadeira. Não sou de campanhas de internet, acho pobre, mas é um mecanismo dos dias de hoje. Ali não se aprofunda nada. É um lançamento de bandeiras. Acredito na arte como mudança, ventilar, tentar tocar o coração das pessoas. O feminismo teve o mérito de sair em defesas importantes, mas tinha o compromisso de aprofundar discussão, não ser um mero embate homens versus mulheres. Não tem luta bem-sucedida se não envolvermos os homens de forma positiva”, disse. Fernanda foi além: “Estamos vivendo a primavera feminina, que estourou no fim do ano passado, de 2015, e foi um movimento lindíssimo que começou com a hashtag ‘meuprimeiroassédio’, em que todas as mulheres ficaram muito mexidas. Acho que, desde lá, estamos vivendo um divisor de águas. Cada vez mais acredito que nós, mulheres, não podemos deixar passar, não podemos deixar de falar e ler sobre isso, falar com os homens. Não é uma questão só feminina, mas principalmente masculina. Temos que fazer com que os homens percebam a cultura patriarcal que foram inseridos, eles também são vítimas disso e também são responsáveis pela modificação”, defendeu. Assinamos embaixo.