Cartografia do Amor: viagem oceânica ao Rio das frutas frescas, da Mangueira, do candomblé e dos passistas sincopados


Nesse artigo, Alexei Waichenberg revela: “Uma embarcação de cargas me abriga em alojamento simples e ao sabor das marés perco e ganho o equilíbrio entre a saudade e o desejo. Entre o livro de palavras cruzadas em português, intercalo um catálogo a ser preenchido pelas lacunas que o amor me deixou”

Ilustração (feita exclusivamente para essa crônica), assinada pelo artista plástico Leandro Figueiredo, atualmente morando no Porto, em Portugal

*Por Alexei Waichenberg

Hoje venho propor uma viagem oceânica, porquanto satisfaça o meu desejo de singrar os mares bravios para rever o meu amor, ou esperar que ele, com a precisão do poeta, me aguarde no porto distante e possa me receber com braçadas de flores coloridas, disformes e paisagens, por ora, já esmaecidas no pensamento, do amor de sempre.

Embarco no Porto de Hamburgo, nas terras geladas germânicas e o faço na nau de ferro, que flutua minha esperança de afetos tórridos dos trópicos.

Os orixás me acompanham, os deuses gregos inspiram e já estou a bordo. Os uivos da Floresta Negra anseiam pelo canto do sabiá, os grunhidos do Uirapuru do Villa.

Uma embarcação de cargas me abriga em alojamento simples e ao sabor das marés perco e ganho o equilíbrio entre a saudade e o desejo. Entre o livro de palavras cruzadas em português, intercalo um catálogo a ser preenchido pelas lacunas que o amor me deixou.

À cada assobio do vapor, a cada litro de querosene, contraponho meu puro malte que balança, enquanto é firme a farda do capitão. Me acordam para ver baleias, que espirram de brilhos as estrelas, que outrora guiaram amores mais antigos, mas não menos firmes do que o que fez decidir cruzar o Atlântico.

São dias intermináveis, noites do idílio próximo, marés de águas calmas e bravias, ondas de disciplina e solidão.

Pequenos desvios e oscilamos, numa náusea que de tão companheira, nos testa a verdadeira compreensão do que somos e do que ainda queremos ser. Temos a liberdade, o vento na cara no convés, as máquinas barulhentas vencendo a natureza, os marujos atenciosos a tratarem-me como relíquia que nunca dantes transportaram.

Adormeci no sonho de desbravar e quem sabe receber meu prêmio no destino. Passam as auroras e os crepúsculos, passa a quinzena de meteoros brincalhões e sem qualquer pedido, toca na cabine o telefone. Ao que passa a dizer o Primeiro Oficial:

– Srta., gostaria de vir à torre de comando?

– Sim, gostaria

Havia pedido ao oficial que me despertasse à luz de qualquer situação que me pudesse impressionar. Subi apressada, sem que pudesse me compor a contento. Mas, não era preciso. Desabei por completo ao ver, entre a névoa das 4 da manhã e a luz do dia que exigia os clarins da manhã preguiçosa, os contornos daquele pedaço de continente, que eu guardo como o paraíso escolhido, a terra improvável de Huxley, o meu Rio de Janeiro, das frutas frescas, da Mangueira, do candomblé, dos passistas sincopados, da cena deslumbrante, que nem o Cristo de tão alto pode ver. Meu Rio de Janeiro a dezembro, do marco da minha alegria, do amor que sempre me espera.

Os práticos já acompanhavam o grande navio, quando as buzinas de ar anunciaram a minha chegada. Desembarquei cansada de tanto esperar, mas feliz por que ali me esperavam.

Dois bons amigos, me fizeram a corte e me embarcaram numa outra aventura: a de reconhecer, em mim, que amo minhas chegadas, minhas partidas, amo mesmo poder estar onde o afeto fizer festa, onde amor me criar âncoras, onde os laços sejam robustos, onde o casco suportar.

*Alexei Waichenberg, jornalista de Porto em porto.