*por Vítor Antunes
Quem são essas mulheres árabes? As sedutoras odaliscas ou as reprimidas mulheres de Cabul? Quem são as mulheres brasileiras? As “liberadas” das capitais brasileiras ou as reprimidas do interior? Essas perguntas não pensam ser respondidas na montagem de Carolina Chalita, “Eu matei Sherazade” mas provocadas pela atriz na peça baseada em obra de Joumana Haddad, autora libanesa famosa por seu ativismo. Aliás essa pergunta sobre o que guia as mulheres num ambiente machista precede de mais uma: O que sente uma mulher em meio à guerra? Joumana Haddad estaria presente na estreia da peça, porém, não poderá estar presente no Rio de Janeiro. O texto também tem trechos que ela fala da Guerra Civil de 75. A peça estreia amanhã, dia 8 de outubro e fica por dois meses no Teatro Poeira, de Andrea Beltrão e Marieta Severo, depois pretende fazer algumas temporadas em São Paulo e turnê pelo Brasil.
Explodiu a guerra no Líbano. Joumana está isolada, teve que se esconder, mas está em segurança. Por enquanto, ela saiu do centro de Beirute, está num lugar mais afastado para se proteger e disse que há bombardeios no entorno do aeroporto e não há como pegar o avião e vir ao Rio, mas ela vai mandar um depoimento para mostrar para o público – Carolina Chalita
A montagem também traz a importância de se destacar os desafios que a mulher vive não só num ambiente duro como o Líbano, mas a existência e a própria mulheridade. “Uma mulher existir no mundo é violento e a Joumana para mim traz a palavra sobre o que é ser mulher num país super hostil e me aproximar muito da realidade brasileira. Como que você faz com mulher para existir hoje no mundo que as mata o tempo inteiro. A cada ensaio que a gente vinha fazendo, era divulgado um assassinato de uma mulher barbaramente no Brasil e no mundo”. Estive no Oriente Médio três vezes. Sou apaixonada pelo Líbano. É um país onde eu vi as mulheres mais lindas do mundo e onde elas são oprimidas, tentando existir na forma que podem”.
O monólogo, com atuação e dramaturgia de Carolina Chalita, direção de Miwa Yanagizawa, produção de Sérgio Saboya e música ao vivo de Beto Lemos, é baseado no livro homônimo da autora libanesa Joumana Haddad. Para Chalita, que tem ascendência libanesa, a montagem tem um valor especial. “Meus antepassados vieram ao Brasil também por causa da guerra, então me vejo também neste lugar de de fuga, de quem sair do seu país de origem, também movida por essa coragem.
Meus familiares, assim como muitos de seus conterrâneos, vieram para um país sem saber falar nenhum idioma para tentar uma vida no escuro por ser impossível sobreviver em função da violência e da guerra, então isso para mim é uma matéria-prima muito forte para o espetáculo. A guerra está muito presente no meu corpo e no texto dela traz essa sensação de um míssil, descendo ou ou uma bomba então como eu estou trabalhando isso diariamente parece que eu estou vivendo o que eles sentem lá – Carolina Chalita
Carolina Chalita traz o debate sobre a questão libanesa ao teatro (Foto: Vinícius Mochizuki)
A Carmem Lúcia, Ministra do Supremo, ressalta que os homens que mais matam mulheres começam as violências pelo rosto. Querem destruir o rosto das mulheres, porque o rosto é que fascina, é o lugar do poder, da beleza – Carolina Chalita
A peça de Joumana Haddad, interpretada e comentada por Carolina Chalita, oferece uma reflexão profunda sobre o papel da mulher na sociedade, abordando questões como poder, submissão e liberdade. Chalita, ao discutir a obra, destaca a luta contra o controle masculino sobre o corpo e a liberdade feminina, afirmando: “Eles não sabem lidar com esse poder a não ser controlando, possuindo e colocando numa gaiola para ser posse deles, e a mulher não é posse de ninguém.” Assim, a peça traz à tona a rejeição à ideia de que as mulheres devem moldar-se para agradar os homens ou submeter-se às regras sociais para sobreviver. Como a atriz coloca: “A gente tem o direito de escolher o que a gente quer ser, na hora que a gente quer ser, como a gente quer ser, gostem eles ou não.”
Chalita também levanta uma reflexão crítica sobre os estereótipos culturais em relação às mulheres, destacando como a visão ocidental de liberdade feminina pode ser tão limitadora quanto a opressão que critica. Ela provoca: “Quem disse que o biquíni é mais livre do que uma burca? Quem disse que expor a bunda ou o seio não é também uma forma de subserviência ao homem?” A peça, portanto, questiona tanto a exotificação e sexualização da mulher árabe quanto a objetificação das mulheres no Ocidente, pedindo uma análise mais profunda sobre o que significa ser verdadeiramente livre.
Qual a ideia que foi solidificada sobre a mulher árabe? Esta éuma das perguntas que movem o monólogo de Carolina Chalita (Foto: Vinícius Mochizuki)
A discussão entre a realidade das mulheres árabes e brasileiras surge como uma crítica à ideia de que essas culturas estão em extremos opostos. Chalita observa: “Será que a gente está tão distante assim delas?” E rapidamente responde: “No Brasil, que é o quarto país do mundo que mais mata mulher, a gente acaba não estando distante do Afeganistão.” Essa comparação expõe a brutalidade do feminicídio no Brasil e sugere que, apesar das diferenças culturais, a opressão que mulheres enfrentam é universal.
Quanto ao machismo, Chalita destaca que as mulheres estão cada vez mais conscientes de seus direitos e possibilidades, o que gera uma reação violenta do patriarcado: “O machismo é um negócio muito enraizado, e as mulheres estão cada vez mais sentindo esses ventos novos para se libertar. É por isso que a violência está cada vez mais forte.” Para ela, a peça traz uma nova proposta de olhar para o futuro, onde tanto o feminino quanto o masculino podem ser reconstruídos a partir de novas perspectivas: “Ela está propondo que a gente olhe para frente, como novas possibilidades desse feminino existir e desse masculino existir, porque uma coisa está ligada à outra.”
“No Brasil, que é o quarto país do mundo que mais mata mulher, a gente acaba não estando distante do Afeganistão” (Foto: Divulgação)
Chalita também reflete sobre a ausência de elementos autobiográficos diretos na peça, explicando que a obra não foca em experiências pessoais de abuso, mas sim na libertação das mulheres através da literatura e da arte. “A peça na verdade está fazendo uma ode à liberação do patriarcado.” Para ela, a obra de Haddad é um convite para que as mulheres usem a literatura como uma arma de emancipação, libertando-se do controle patriarcal”.
Em relação aos seus novos projetos, Chalita menciona o lançamento de dois filmes, um dirigido por Murilo Salles, com Caco Ciocler, e outro com Thiago Lacerda. Ela afirma: “O próximo filme do Murilo é lindo, vai ser lançado em breve, e tem também o do Thiago, onde nós somos os protagonistas.” Seu envolvimento em diferentes frentes artísticas reflete seu compromisso com narrativas que promovem discussões sociais importantes, como a liberdade feminina. Ao final, Chalita reflete sobre os desafios de ser mulher em uma sociedade que tenta controlar sua liberdade: “Eu sou uma mulher, eles acham que possuem a minha liberdade, então eu deixei eles acharem… e ascendi!”