Carol Duarte vive escravocrata no teatro e fala sobre interpretar trans na Globo: “Discutiu-se sobre isso às 21h”


A atriz deu vida ao personagem Ivan em “A Força do Querer”, numa época em que a discussão sobre transexualidade na TV ainda era algo inicial. Hoje, há uma maior representatividade tanto na televisão como nos outros meios, inclusive na política. Carol celebra esse avanço, ainda que reconheça que da exibição da novela para cá muitas coisas aconteceram, especialmente após a eleição de Bolsonaro e sua agenda conservadora. Mas ter o assunto da pluralidade presente na principal novela da Globo foi, efetivamente, algo positivo. “Passou a haver discussão sobre isso. As pessoas passaram a se emocionar com o Ivan”, diz ela, exaltando o fato de ele não ser encaixada num núcleo de humor. Além disto, Carol fala sobre seu mais novo projeto, a pela “Babilônia Tropical”, onde o assunto da escravização e da exploração dita a tônica e permite um olhar para o Brasil moderno, do trabalho análogo à escravidão e da super-uberização

*por Vítor Antunes

Carol Duarte revelou-se para o Brasil a partir do trabalho em “A Força do Querer“, novela de Glória Perez, levada ao ar em  2017. À atriz, coube viver Ivan e os desafios de uma pessoa que se descobre transexual. Hoje, a atriz torna a reconhecer a importância do pioneirismo naquela época, ainda que hoje se problematize o fato de tratar-se de uma mulher cis dando vida a um homem trans. “Era 2017. A gente vivia a discussão de haver uma personagem trans numa novela das 21h. Hoje discutimos política pública para pessoas LGBTQIA+. Foram seis anos de grande transformação. Quero ficar velhinha e ver ainda mais espaços, maiores ocupações e pontos chaves de mudança”, diz ela.

Carol ressalta a importância da representatividade LGBTQIA+. Para ela, a relevância de Ivan vai além do fato de ser ela uma atriz cis, mas de o personagem haver tocado o Brasil profundo nesta pauta. “Passou a haver discussão sobre isso. As pessoas passaram a se emocionar com o Ivan. Sua vida era pura dramaturgia e as pessoas se sensibilizaram”. Contemporaneamente há a discussão, especialmente dentro da comunidade LGBTQIA+ sobre o uso do transfake, que é a caracterização de um ator não-trans para viver esse perfil de personagem, algo que era incipiente em 2017.

Outro trabalho de Carol, este mais atual, e que também gera discussão é o que consta na peça “Babilônia Tropical“, onde protagoniza e dá vida à Anna Paes, uma dona de engenho que é obrigada a casar-se jovem e que apesar de posicionar-se de maneira contundente como mulher, num Brasil ainda mais patriarcalizado doSSéculo XVII, reitera a pratica do uso da mão de obra de escravizados.

A peça, dirigida por Marcos Damigo, retrata não apenas esse matiz, mas também a atualidade, que explora a mão de obra das pessoas com a grande pejotização e precarização do mercado de trabalho. A atriz, durante a entrevista citou casos de duas grandes empresas que lançaram mão desse expediente. Uma delas, coincidentemente, do mesmo segmento que a de sua personagem, no Brasil Colônia. Em março de 2023 foi tornado público que um engenho açucareiro que fornecia material para a marca de açúcar refinado utilizava-se de mão de obra escrava e que as vítimas trabalhariam para uma terceirizada que fazia capina e replante de mudas na fazenda fornecedora – representante da marca de açúcar. “Falar de um engenho no século XVII é falar de uma estrutura que funda o Brasil e existe até hoje”.

Carol Duarte. Atriz traz de volta o debate sobre a questão trans em novela e, no teatro, o problema do trabalho escravo (Foto: Divulgação/TV Globo)

FORMAS, CORPOS, TRANSFORMAÇÕES

Quando “A Força do Querer” foi levada ao ar, em 2017, temia-se sobre como abordar a questão da transexualidade. Glória Perez, sempre antenada sobre o tema contemporâneo, pensou inclusive em ter o ator e político Thammy Miranda na centralidade desse debate, mas por fim coube à atriz Carol Duarte interpretar Ivan/Ivana no horário das 21h. Aliás, importante ressaltar o pioneirismo da autora, que trouxe o tema duas vezes em suas novelas. Em 1995, o ator Floriano Peixoto deu vida à Sarita Vitti. Na época, nem mesmo a comunidade LGBT – que naquele momento intitulava-se GLS – não sabia categorizar Sarita, hoje mais facilmente reconhecível como trans. Porém, contemporaneamente, haveria um outro questionamento: O lugar de fala desses atores. Floriano é heterossexual. Carol, ainda que lésbica, é uma mulher cis. Trata-se de um transfake? Para Carol, é preciso olhar para o recorte temporal: “Houve a possibilidade da discussão. Passou a se falar, discutir e as pessoas do Brasil profundo se emocionaram com o Ivan, que não era uma caricatura nem estava no núcleo cômico”, ressalta.

Naquela época, a discussão sobre transexualidade na TV era ainda incipiente. E, segundo Carol, “em seis anos houve uma grande transformação. Nós, LGBT’s ganhamos espaços nos setores sociais. Temos deputados, representação política e isso é muito importante. A luta em favor dos oprimidos favorece a todos. A novela permitiu que a transexualidade fosse levada à tona em lugares em que não temos noção, já que o Brasil é grande demais e a novela atinge pessoas de modo que o teatro e o cinema não alcançam. Hoje, em 2023, muitas coisas mudaram e as discussões avançaram”. Tanto o é que pela primeira vez a Globo trará uma mulher trans como protagonista. Mas, aponta Carol, ” não se pode dar um passo atrás, por que a violência vem forte sobre essas pessoas. Precisamos de proteção. O Brasil é muito violento [para com pessoas LGBT]”.

Quando a novela foi ao ar já havia uma onda conservadora subindo e numa escalada que não sabíamos que iria culminar na eleição de Bolsonaro e na existência de Damaris [Ministra de Direitos Humanos da antiga gestão], por exemplo, que demandariam num retrocesso  grande. Mas, ainda assim, houve progressos. E não há quem possa segurar esses avanços – Carol Duarte

Carol Duarte deu vida a Ivan/Ivana em “A Força do Querer”, onde a transexualidade foi um dos temas (Foto: Divulgação/Globo)

No lugar de fala feminino, Carol problematiza a hiperssexualização do corpo feminino. Também outro assunto falado com mais veemência hoje. O corpo das mulheres, além de tudo, sempre foi um campo de disputa e surpreende até mesmo a quem é letrado nesta questão. “Nessa sociedade podemos até achar que temos a nossa personalidade e nascemos com ela, mas estamos expostas a partir dessas regras, desse caldo de sociedade, que é muito misógino, racista, preconceituoso e que acha que o corpo da mulher é passível de ser invadido e controlado. É difícil não esbarrar nisso, mesmo que subjetivamente”.

O corpo feminino ainda está nesses padrões de fetiche à disposição do homem e do que ela acha, do que define como comestível ou não. Eu sou uma atriz, tenho 32 anos e sou fruto de uma geração de mulheres que lutaram demais para que os nossos corpos fossem respeitados e eu sou branca, encaixada em alguns padrões. É preciso falar das pretas sapatões…. A nossa sociedade é violenta e violenta a mulher o tempo inteiro. Nosso corpo parece um campo em disputa – Carol Duarte

Carol Duarte: “o corpo feminino é um campo em disputa” (Foto: Murillo Basso)

O SAL DO AÇÚCAR

“Quando falamos em História do Brasil é difícil não falar em violência. É uma História calcada em violência, em silenciamento de outros povos, de tomada de terra… Ao falar de teatro, estamos jogando luz nisso. Nossa ideia é não apresentarmos respostas, mas perguntas”. É assim que Carol Duarte apresenta a história, ou a premissa da história de “Babilônia Tropical” e sobre a vida da personagem que interpreta, Anna Paes, pernambucana sobre a qual não há muitos registros senão um bilhete e o posicionamento dela, que enriqueceu e sustentou o seu engenho à custa de mão de obra escravizada. “Em 1600 e tanto havia, naquela colônia brasileira, os explorados e os exploradores. E isso continua acontecendo em muitas instâncias”.

Nesta entrevista, a atriz usou dois exemplos recentes, de duas empresas que sofreram sanções por lançarem mão de trabalhos muito precarizados. Um deles era o que explodiu na vinícola gaúcha Salton  e o outro em uma empresa terceirizada vinculada à fabrica de açúcar Caravelas. “Essas produções são acobertadas por pessoas que estão no poder. Ainda que tenham leis trabalhistas que hajam como bússola, estamos falando de capitalismo e exploração. E isso não acaba. É mais fácil virem o fim da Terra do que o fim de uma relação de trabalho explorador”

Há uma discussão recorrente no Brasil que é a de quais ladrões devem ir para a cadeia. Eu concordo que todos que roubam devam ser presos, mas não acho que só devem ser detidos os que roubam um biscoito, uma galinha, mas também os que roubam terras, pessoas ou que escravizam. É triste ainda estarmos nesse pé de discussão em que sabemos quem vai ser alvo de bala perdida ou explorado. Inclusive isso nos faz pensar que Anna Paes está viva e muito viva ainda – Carol Duarte

Carol Duarte em “Babilônia Tropical” (Foto: Divulgação)

A temporada de “Babilônia Tropical” vai até o fim de setembro no Rio de Janeiro e depois volta para São Paulo, onde fica até novembro. Ainda para este semestre, pretende-se que seja lançado um filme italiano que Carol fez, chamado “La Quimera“, com uma diretora chamada Alice Rohrwacher e que conta, no elenco, além da atriz brasileira, com Isabella Rossellini e Josh O’Connor. Há, também, outro filme “Malu”, de Pedro Freire, protagonizado por Yara de Novaes e que conta com Juliana Carneiro da Cunha em seu elenco.

Angola. Congo. Benguela. Monjolo. Cabinda. Mina. Quiloa. Rebolo. Os homens chegaram. De um lado, cana de açúcar. As moendas faziam com que escravizados perdessem mãos ou braços. Nas fornalhas, a ferida era por queimadura. De outro lado, cafezal. Algodão branco, colhido por mãos negras. Este parágrafo tira toda a melodia da canção de Jorge Ben para se observar que a cada pausa e a cada respiração que sucede uma frase, ao menos uma pessoa foi presa no Brasil nos engenhos modernos, que moem a dignidade como fosse cana de açúcar. 80% dos presos injustamente são pretos, segundo a Defensoria Pública do Rio. 82% dos resgatados de trabalho escravo no Brasil também são pretos. Os primeiros escravizados chegaram em 1530. Os últimos, não chegaram. Nasceram aqui. Fazem milhares de corridas ao mês e torcem para receber 5 estrelas de um passageiro benevolente.