Camilla e Rafaela Amado repetem a parceria da vida real também no teatro. As duas contracenam na intensa peça “Electra”, baseada no texto de Sófocles, que estreou nesse sábado, 3, no Sesc Copacabana, dando vida a mãe e filha, só que numa pegada bem diferente da que elas compartilham fora do palco. Enquanto são superamigas fora de cena, no espetáculo a personagem-título mata a progenitora em uma catarse familiar com o apoio do irmão Orestes, interpretado por Ricardo Tozzi. A história da vingança dos filhos contra uma mãe adúltera divide o público entre a comoção com a mulher que perdeu uma filha sacrificada pelo marido e os filhos que perderam um pai assassinado pela mãe. “São dois animais feridos, impossível vencer sem perder”, sintetizou o diretor João Fonseca, emendando que o texto original é uma disputa de poder. “Para Sófocles, o que importa é que ninguém pode usurpar um poder que não é seu ou abusar disso para acabar com a liberdade de seus opositores. Electra é uma peça a favor dessa liberdade e contra a opressão”, explicou.
Com um elenco que conta, ainda, com nomes como Francisco Cuoco, Mario Borges, Paula Sandroni e Alexandre Mofati, o drama de 500 anos antes de Cristo não poderia ser mais atual. “É muito emocionante essa estreia. Vemos uma obra de arte tão antiga acontecer ainda hoje em tantas cidades. É atual, preciosa e muito gostosa de fazer”, declarou Francisco Cuoco, no auge de sua vitalidade, aos 80 anos, após a primeira apresentação na arena do Espaço SESC, em Copacabana, antes de receber o abraço da namorada, Thaís Almeida, de 27 anos. Perguntado como é interpretar um personagem tão intenso e sair direto para os braços do público, o ator disse que a alegria é contagiante. “O personagem é pesado, mas saímos e vemos essa animação aqui fora e isso dá felicidade”, disse. A tragédia clássica foi uma das mais montadas no século XX e mostra o ser humano frente a um dilema forte que revisita valores universais e ultrapassa gerações.
Camilla Amado concorda. Após dez anos tentando convencer a filha a embarcar no projeto, a idealizadora não poderia estar mais satisfeita. “Eu queria trazer de novo o que está acontecendo aqui agora”, falou, entre um cumprimento e outro após o espetáculo. “A gente tem a honra de fazer um texto forte. A nossa grande felicidade é a morte”, disse a intérprete da mãe, que quer ser morta pela filha. Rafaela fez questão de ressaltar que, apesar do texto perigoso, o processo foi calmo. “Minha mãe é incrível, foi um projeto dela e um processo tranquilo, a gente se dá superbem. Eu nunca tive vontade de matar a mãe, ela que queria morrer, então foi tudo certo, esquecemos o pessoal. Fora do teatro tentamos falar pouco sobre trabalho e quando eu saio daqui desligo total. Não tenho problema com isso”, explicou.
A parceria das duas com João Fonseca é antiga. Rafaela, que já atuou em mais de 15 montagens do diretor, o conheceu nos anos 90 na companhia “Os fodidos privilegiados”. “O João é meu irmão da vida toda, então o que ele mandar eu faço”, disse ela, que considera esse trabalho um dos mais intensos de sua carreira. “Foi maravilhoso, essa personagem é a mais incrível que já fiz na vida”.
O diretor também foi só elogios ao elenco e ao texto. “É clichê, mas não dá para não dizer o quão feliz estou. É um privilégio trabalhar com tanta gente bacana e fazer esse embate que dá muito pano para manga com mãe e filha, duas amigas e grandes atrizes”, declarou ele, que analisa o sofrimento em cena como essencial para um mundo com menos maldade. “Fazer teatro é uma grande brincadeira. Ficamos tristes lá para sermos felizes aqui”, disse. De fato, o texto põe o público de frente aos instintos que o ser humano insiste em renegar. “Gosto da tragédia porque ela nos faz olhar o nosso animal. O homem precisa ver e reconhecer esse lado. Aceitar o nosso animal é aceitar a nossa imperfeição”, disse Camilla, enfatizando que Electra é uma representante exemplar disso. “É bom lembrar que todos somos bichos ferozes quando maltratados”.
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