* Por Carlos Lima Costa
A pandemia da Covid-19 acarretou uma série de problemas para a sociedade. Com a quarentena, casais permaneceram mais tempo juntos no cotidiano. Isto elevou o índice de violência contra as mulheres. Diante deste cenário, como forma de alertar e ajudar no combate, além de acolher e dar voz às vítimas, o projeto do espetáculo Abuso, que vinha sendo elaborado há cinco anos, foi finalizado e será apresentado ao público. Alessandra Gelio, que assina o texto e a direção, além de Bella Rodrigues e Natascha Stransky, responsáveis pela idealização da produção, sendo que as três ainda atuam, falam com propriedade sobre o tema. Elas e todas as artistas envolvidas com a peça, um dia representaram um número a mais nas estatísticas. A narrativa estreia neste sábado, dia 30, na plataforma Zoom, acontecendo também aos domingos, e poderá ser conferida durante três finais de semana.
“Sofri abuso sexual na infância, pelo meu padrasto, aos 12 anos, conheci a violência doméstica, abuso físico, emocional, agressão de vários parceiros. Mas o espetáculo não foi escrito baseado somente nas nossas histórias. Entrevistamos mais de 20 mulheres, através de chamados que fizemos na internet, e também com apoio do CEAM (Centro Especializado de Atendimento à Mulher Chiquinha Gonzaga), que recebe casos de violência doméstica”, pontua Alessandra, referindo-se ao órgão da Secretaria Social e Direitos Humanos do Rio de Janeiro. Aos 37 anos, ela que também é professora de teatro, terapeuta e está se especializando em Neurociências e Comportamento pela PUC-RS, ressalta que nesse período de lockdown, em determinado momento, a violência doméstica tinha aumentado em 50%.
A violência contra as mulheres é realmente um sério problema na sociedade brasileira. Por exemplo, segundo relatório mundial 2021 da Human Rights Watch, organização internacional não governamental, em 2019, tramitavam na justiça do nosso país, um milhão de casos de violência doméstica, além de 5.100 casos de feminicídio. E de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), no primeiro semestre de 2020, o Brasil registrou 648 casos de feminicídios, 1,9% a mais do que o mesmo período de 2019
Alessandra, aliás, faz pequena participação na peça que conta a história de três mulheres: Gisele (Bella Rodrigues), Natalia (Natasha Stransky) e Ellen (Caren Laurindo), que passam pelas mais variadas adversidades. A primeira, sofre abuso sexual. A segunda inicia namoro, acha que é um encontro de almas, mas acaba se desenvolvendo uma dinâmica de abuso psicológico. E a terceira não tem relacionamento estável, é abusada sexualmente pelo cunhado, engravida e é desacreditada pela mãe ao pedir ajuda. “A gente diz que não é uma peça, mas sim uma experiência cênica virtual documental”, conta Alessandra. No elenco, ainda Cynthia Mello. O ingresso pode ser adquirido na plataforma Sympla. Ao efetuar a compra, a pessoa recebe o link da apresentação. Quem assistir e quiser conhecer mais detalhes do projeto, pode acessar a página do Instagram @abuso.projeto.
Bella ressalta o quanto a Justiça deixa a desejar em casos de agressões às mulheres. Tendo conhecimento de ocorrências que não foram amparadas pela lei, muitas nem denunciam. “Fui vítima de um estupro, tem mais de dez anos. E não me senti representada pela Justiça na época. Denunciei, fui atrás dos meus direitos, mas o agressor não foi condenado, não pagou o que ele fez comigo. Então, me senti violentada pela Justiça também, que falha muitas vezes, deixando os agressores impunes. Isso é o mesmo que falar que a nossa vida não vale nada. A Justiça não vai curar as feridas desses traumas, mas se fosse feita, nos traria um pouco de alívio e alento”, avalia.
O episódio com Bella ocorreu em um cruzeiro marítimo. “Na minha cabine, acordei com esse homem em cima de mim, me alisando. Tentei me desvencilhar, ele me pegou por trás, me deu uma gravata no pescoço, fui ficando sem ar. E me ameaçou de morte. Quando percebi que não ia conseguir lutar com ele, o deixei fazer o que queria. Estava tão doido, que após me violentar, dormiu. Corri pedindo ajuda, ele foi preso em flagrante e até hoje me questiono porque foi solto. É grande o desgaste emocional de não ser acolhida”, acrescenta Bella, com a voz embargada. Ainda na infância, com cinco, seis anos, ela já conheceu a crueldade humana, sendo molestada pelo padrasto. “Não houve penetração, mas ficava tocando no meu corpo e me pedia para tocar nas partes íntimas dele, uma coisa absurda”, desabafa.
Há dez anos, Bella já era atriz. Em televisão, por exemplo, participou da novela Gabriela e do humorístico A Turma do Didi, na Globo. “Precisava fazer algo com relação a isso com a minha arte, colocar para fora essa dor, essa angústia da injustiça e da agressão em si. Precisava buscar histórias, sabia que para as mulheres confiarem em mim e me contarem o que passaram, eu precisava me abrir e ser a primeira pessoa a contar a minha história. Essa pesquisa para a peça foi uma troca muito legal de experiências e de sororidade entre as mulheres”, avalia Bella, de 35 anos.
O que faz esses dramas serem recorrentes em pleno 2021? “Para isso diminuir existe um trabalho que precisa de tempo para ser sedimentado, porque o machismo é estrutural, arraigado. Ainda existem resquícios de uma ideia de que o homem tem poder sobre a mulher. Demora desconstruir esta visão de que a mulher é propriedade do homem. Tivemos muitas conquistas, mas faltam várias ainda”, observa Alessandra.
Sobre casos de violência doméstica, ela aponta ainda que o homem com grau de machismo mais proeminente acaba radicalizando em momentos de tensão. “Mas esse estresse foi generalizado, aumentaram violência doméstica, depressão, ansiedade, suicídio. Foi uma potencialização de transtornos, que acabam gerando mais violência, sobretudo em relação à mulher. O que está melhorando, é que agora as mulheres estão tendo coragem de falar. Isso é o grande mote do nosso espetáculo. Puxar o quanto acontece, a maneira como acontece e não vamos mais nos calar. É preciso ter esse assunto em pauta. Muitas mulheres, inclusive, personalidades tem vindo a público falar sobre isso. Acho que estamos nos encorajando enquanto mulheres. Agora, conheço muitas que tem medo de morrer, de serem vítima de feminicídio”, ressalta. Entre os famosos, por exemplo, vimos recentemente o cantor Nego do Borel ser acusado de abuso físico e psicológico pela ex noiva, a atriz Duda Reis. Nesta quinta, dia 28, a polícia, inclusive, cumpriu mandado de busca e apreensão em dois endereços, do cantor, um no Rio, outro, em São Paulo.
Alessandra frisa ainda que o abuso não se restringe a nenhum tipo de classe, profissão, religião. “Infelizmente, está em todos os lugares”, frisa. E transformou sua dor em acolhimento para as outras vítimas. “Eu me tratei e hoje não tenho receio de que algo aconteça, eu transmutei isso. Hoje, faço oficinas terapêuticas com mulheres vítimas de violência. Então, tenho muita propriedade dos gatilhos, dos sinais. Quando surge um homem com algum tipo de atitude que cheira a micro ou macro violência, eu já me afasto, não deixo nem chegar perto”, observa.
Nem todas possuem esse discernimento ou conseguem deixar com rapidez uma relação abusiva. “Existe uma coisa chamada ciclo da violência, que envolve relação de dependência. Geralmente o abusador tem perfil de dominância e aos poucos vai criando uma relação de poder com a mulher, que fica em uma situação de dependência emocional. Ela não consegue sair, porque acredita que não é capaz de viver sem aquela pessoa. É algo dissonante, mas acontece. Nesse ciclo da violência, o cara pede desculpas, diz que aquilo não vai mais se repetir, que ele a ama muito. Muitas mulheres acreditam que tem culpa de estar apanhando, que ela é a errada. Isso é comum. Eu não só achei que eu tinha culpa, na violência física, mas que era a causadora do descontrole nos homens”, recorda Alessandra. E ela alerta: “Se acontecer algo, peça ajuda e aceite. Fale com uma vizinha, mãe, irmã, filha, seja lá quem for, porque, às vezes, parece que não tem saída, mas tem. Não precisa viver dessa maneira.”
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