Após assalto e perda de todo o cenário e equipamentos da peça “Mães de UTI”, Cia Cerne faz vaquinha para pagar remontagem e seguir com a agenda de apresentações: “Foi bem chocante”, lembrou produtor


Com o drama e a energia para recomeçar, o desafio passou a ser a consequência financeira disso tudo. Para remontar o cenário do espetáculo, Leandro Fazolla contou que parcelou os custos e combinou de pagar depois os fornecedores que prestaram serviço à companhia

“A gente tinha acabado de fazer uma apresentação em Duque de Caxias e estávamos voltando para guardar todo o cenário do espetáculo. No caminho, fomos abordados por um carro que disse que na rua que estávamos entrando estava tendo assalto. Quando demos a ré, vieram três caras armados  e levaram tudo”. Este é o relato de Leandro Fazolla, ator e produtor da Cia Cerne, que, após uma noite de trabalho, foi da euforia dos palcos ao choque da realidade urbana. Em 14 de setembro, o artista testemunhou mais um episódio da violência da Região Metropolitana do Rio de Janeiro ao ter o veículo, os equipamentos e toda a estrutura da peça “Mães de UTI” roubados na volta para casa.

De acordo com o ator e produtor da companhia, o crime ocorreu após uma apresentação no Sesc Duque de Caxias. “Foi bem chocante. O espetáculo era mais ou menos novo, esta havia sido nossa segunda apresentação após uma temporada em agosto. Eles levaram o automóvel, o cenário da peça e pertences pessoais meus e do diretor na companhia que estava comigo”, lembrou Leandro que, após assaltados, ainda se viram em um local desconhecido. “Depois de passar por esse susto, ainda tivemos que contar com o acolhimento de quem mora ou estava passando por lá. Era um local inseguro e não tínhamos como entrar em contato com ninguém e nem dinheiro para sair de lá”, disse.

Espetáculo “Mães de UTI” da Cia Cerne que teve seu cenário assaltado após apresentação (Foto: Stephany Lopez)

Após o susto e uma noite na delegacia testemunhando o aumento nos casos de violência no estado do Rio, Leandro Fazollla teve outra difícil realidade no caminho da companhia. Sem cenário, o espetáculo tinha mais duas apresentações duas semanas depois do assalto e uma agenda de compromissos para honrar. Sem tempo para pensar duas vezes em um momento de crise cultural, a Cia Cerne decidiu remontar a peça “Mães de UTI”. “Quando fizemos o cenário para estrear, levamos mais de um mês e meio pesquisando e contratando fornecedores mais baratos. Depois do assalto, tivemos que fazer tudo em 15 dias para que a gente conseguisse manter a agenda. Foi uma correria e, inclusive, algumas partes do cenário só chegaram um dia antes da apresentação”, lembrou o produtor.

Com o drama e a energia para recomeçar, o desafio passou a ser a consequência financeira disso tudo. Para remontar o cenário do espetáculo, Leandro Fazolla contou que parcelou os custos e combinou de pagar depois os fornecedores que prestaram serviço à companhia. Mas, para isso, eles precisam de ajuda. Por causa deste episódio na trajetória de quase cinco anos da Cia Cerne, o produtor recorreu à vaquinha online para conseguir pagar por esta reconstrução. “Quando nós fomos assaltados, compartilhamos nas nossas redes sociais o episódio com a intenção de desabafar um pouco sobre o que passamos. Foi então que amigos começaram a comentar querendo ajudar e nos falando para fazer essa vaquinha”, disse Leandro que nunca havia recorrido à contribuição virtual. “Ainda estamos entender como funciona”, afirmou.

“Mães de UTI” (Foto: Stephany Lopez)

No começo um pouco devagar, o produtor da Cia Cerne contou que a ideia tem dado certo após uma semana de divulgação da iniciativa. Aliás, entre as pessoas que já ajudaram o espetáculo “Mães de UTI” voltar à cena artística estão produtores que passaram por uma situação parecida recentemente. Em junho, o Teatro Clara Nunes, no Shopping da Gávea, pegou fogo e danificou o cenário de dois espetáculos que estavam em cartaz. “Nós recebemos uma ligação deles que também precisaram de ajuda para voltar a se apresentar e conseguiram bater a cota da vaquinha virtual. Eles viram o que ocorreu com a gente pelo Facebook e quiseram fazer parte como forma também de agradecer a todos que ajudaram os espetáculos deles”, contou Leandro que comemorou a onda de solidariedade que tem levando a Cia Cerne. “O primeiro sentimento que temos quando situações tristes como essas acontecem é a vontade de desistir. Fazer arte no Brasil já é muito complicado, ainda mais quando passamos por uma crise como essa de hoje. Já tem muita gente lutando contra a cultura, banalizando a nossa profissão e ate criminalizando nós artistas. Mas, por outro lado, com essa experiência, estamos vendo que também existe muita gente querendo ajudar e fazer com que a gente siga produzindo”, disse animado.

E eles vão seguir. Com a peça “Mães de UTI” ou com outras que fazem parte do catálogo de montagens da Cia Cerne, a agenda segue cheia até o ano que vem. A bordo do novo cenário, o espetáculo assaltado continuará contando sobre a dor e o amor de mães que têm suas vidas mudadas para uma UTI neonatal por causa do nascimento prematuro dos filhos. “A peça ‘Mães de UTI’ foi montada a partir de uma série de relatos verdadeiros que colhemos com mães e médicos que vivem essa realidade de expectativa, medo e amor. O título da peça, inclusive, é o termo dado às mulheres que tiveram filhos prematuros extremos, ou seja, antes de os seis meses de gestação”, detalhou.

A peça conta sobre os desafios das mães que tiveram seus filhos antes de os seis meses de gestação (Foto: Stephany Lopez)

Nesta temática, que Leandro destacou ser pouco explorada nas artes modernas, outras questões ainda costuram o espetáculo da Cia Cerne. Mesmo que de forma não intencional, o feminismo, o aborto e a situação da saúde pública brasileira ganham espaço através dos relatos reais dessas mulheres. “Hoje, só 7% dos municípios brasileiros possuem UTI neonatal na rede pública para cuidar dessas crianças. Por isso, muitas delas acabam morrendo. Nos outros casos, os nenéns chegam a ficar quase um ano em uma incubadora até poder ter uma vida normal. Então, acaba que a peça adquire um tom político por estar abordando uma realidade do nosso sistema e da nossa sociedade”, argumentou.

Não por acaso, esta é realmente uma proposta da Cia Cerne no meio artístico. Com quase cinco anos de história, o produtor do grupo destacou a veia engajada de seus companheiros. “Não é nada panfletário. Mas os integrantes da companhia possuem esse interesse nas questões contemporâneas e isso acaba sendo uma consequência natural no nosso trabalho”, explicou sobre o grupo que possui 11 integrantes e é de São João de Miriti.

Na história da companhia, uma das dificuldades é a própria cidade em que eles se encontram (Foto: Stephany Lopez)

Aliás, este é outro ponto interessante ao comentar a história da Cia Cerne no mercado das artes fluminense. Com a crise econômica e cultural que o Rio de Janeiro vem passando, muitos teatros na capital estão fechando as portas por falta de recursos e incentivo. No entanto, pior que fechar as portas, ou tão ruim quanto, é o fato de elas nunca terem se aberto. “Só por sermos uma companhia da Baixada já temos muito mais desafios a vencer na profissão. Só para se ter uma deia, em quase cinco anos de grupo, nós só nos apresentamos duas vezes em nossa cidade. De resto, em todas as outras, precisamos ou ir para cidades vizinhas ou até viajar para outros estados. São João de Miriti é um município que nem tem teatro público para a gente se apresentar”, lamentou.

Com o pé na estrada, a vontade de vencer e o medo, que ainda deve acompanhar a companhia por algumas ruas desertas, eles seguem montando, criando e ensaiando. Como Leandro Fazolla contou, a Cia Cerne é um grupo de repertório, que nunca acaba com um espetáculo. Nestes anos de carreira, os artistas apenas renovam e acrescentam espetáculos ao catálogo. Fora isso, eles ainda fazem parte de um coletivo. “No Baixada Em Cena nós somos 17 companhias que unidos vamos tentando ganhar espaço e manter essa veia cultural da região viva”, disse sobre o projeto que, inclusive, foi reconhecido pelo Prêmio Shell.

Fora isso, a Cia Cerne segue na estrada e com viagem marca para o Piauí entre as apresentações confirmadas. Como novidade, o produtor adiantou que uma nova peça irá estrear em janeiro. “Pela primeira vez no Brasil, estamos montando um texto na Ana Maria Machado que já tem 35 anos e só foi feito em Berlim. A história é sobre um tirano que começa a proibir tudo de cor e beleza de uma cidade feliz e acaba transformando-a em cinza e triste”, adiantou Leandro Fezolla sobre o livro infanto-juvenil “Era Uma Vez um Tirano” que entrará para o repertório da Cia Cerne em 2018.

Saiba como ajudar na vaquinha virtual aqui!