Após 15 anos, Ernani Moraes volta aos palcos e critica banalização do ator com ascensão de influencers: ‘Perverso’


Com longa trajetória profissional, o ator critica a crescente presença de influenciadores digitais em papéis de destaque na TV, considerando a métrica de seguidores superficial e prejudicial ao ofício do ator. Ele lamenta que jovens sem formação ou afinidade com a dramaturgia estejam sendo privilegiados, em detrimento da experiência e do estudo. Ernani está na peça “Órfãos”, em que atua como um marco de um personagem fora dos papéis estereotipado, simbolizando sua luta pela valorização do talento e da arte genuína. Ernani Moraes reflete sobre sua carreira e a forma como é rotulado pela indústria, destacando o que enfrentou ao longo dos anos. Ele afirma: “As pessoas querem colocar o rótulo. Eu sou um ator de 1,90m, que fala alto, que tem a voz poderosa. Então as pessoas me contratam para fazer os delegados, as figuras tronchas, esquisitas, os malucos…”. O ator também defende maior inclusão de atores maduros nas produções atuais

*por Vítor Antunes

Ernani Moraes, com sua longa trajetória artística, observa perplexidade a ascensão dos influencers ao universo da atuação, um movimento que ele enxerga como sintomático das transformações na indústria cultural e nas formas de consumo de conteúdo. Ele reflete: “Eu  não concordo com essa coisa do influencer. Hoje em dia os caras escalam para papéis na televisão em função da quantidade de seguidores que a pessoa tem. Eu acho isso uma grande sacanagem”, dispara.

Com a voz de quem vive décadas dedicando-se à arte e aos palcos, Ernani vê nessa tendência uma banalização do ofício do ator, que se dilui na busca pelo número de seguidores e curtidas, em detrimento da formação, da experiência e do talento. Ele critica com contundência o uso de métricas digitais para medir a relevância artística. “Ainda mais que esses seguidores,  muitas vezes são comprados. Você pode pegar do Instagram e comprar 200.000 seguidores, 1 milhão de seguidores, mas quantas pessoas curtiram um post do feed? 1%. Ou seja, aquilo ali é fictício, não existe”.

Esse novo paradigma, segundo Moraes, fere a essência da arte de atuar, que é uma construção paciente, baseada em estudo, dedicação e conexão com o público real, não apenas virtual. Ele lamenta que jovens, muitas vezes sem afinidade ou conhecimento sobre teatro e dramaturgia, estejam sendo privilegiados na escalação de papéis: “Eu fico muito chateado com esse novo perfil de escalação em trabalhos em função das pessoas serem influencers… Isso é uma grande perversidade, especialmente porque a maioria desses jovens sequer vê novela”.

O ator traz à tona uma preocupação genuína com o futuro da dramaturgia, ressaltando o distanciamento de muitos desses novos “atores” em relação às tradições do teatro e da televisão. Ele toca em um ponto crucial: o desconhecimento das gerações mais jovens sobre os grandes nomes da arte brasileira, como até Fernanda Torres. Seu olhar crítico é uma espécie de resistência poética contra a superficialidade dos tempos modernos, uma defesa da arte como algo que não pode ser reduzido a números, mas que precisa de alma, profundidade e história. Ele representa a voz de um tempo em que o talento e o estudo ainda eram a principal porta de entrada para os holofotes. E observa a necessidade de, também, se incluir atores maduros nos projetos de dramaturgia.

Eu acho que os escritores, os autores devem começarem a incluir pessoas mais maduras nos seus projetos. Os idosos de hoje não são mais os idosos de antigamente – Ernani Moraes

Ernani Moraes vive um ricaço em Órfãos (Foto: PB Costa Blanca Films)

ELEGANTE

Ernani Moraes reflete sobre sua carreira e a forma como é rotulado pela indústria, destacando os estereótipos que enfrentou ao longo dos anos. Ele afirma: “As pessoas querem colocar o rótulo. Eu sou um ator de 1,90m, que fala alto, que tem a voz poderosa. Então as pessoas me contratam para fazer os delegados, as figuras tronchas, esquisitas, os malucos…”. Porém, um momento de mudança ocorreu quando foi visto por um produtor em uma peça de Nelson Rodrigues, Perdoa-me por Me Traíres, no qual interpretava um personagem diferente. Esse produtor percebeu seu potencial para interpretar o protagonista de Órfãos, um personagem sofisticado e refinado, o que lhe permitiu explorar uma nova faceta: “Pela primeira vez estou podendo fazer uma linha mais arrumado em cena, cruzar uma perna, estar mais charmoso, com classe, com categoria”.

Sob a direção de Fernando Philbert, a adaptação da peça americana de Lyle Kessler, escrita em 1983, narra a história de dois irmãos órfãos que raptam um homem de negócios. À medida que se desenvolve o convívio forçado no cativeiro, os jovens delinquentes começam a projetar no empresário o papel de pai que jamais conheceram. A montagem fica em cartaz no Teatro Faap, em São Paulo, até o dia 26.

Ao comentar sobre seu perfil nas produções audiovisuais, Moraes observa como seu padrão de atuação geralmente segue uma linha de personagens excêntricos ou peculiares: “O meu perfil realmente de ator na televisão, no audiovisual, é um padrão mais estranho sempre. Fico feliz em trabalhar, mas igualmente, em poder no teatro mostrar outra faceta minha e revelar que posso fazer outras coisas também”.

Além disso, Moraes revela que passou quase 15 anos longe dos palcos, dedicando-se ao audiovisual. O retorno ao teatro com Órfãos tem um significado especial: “Essa peça também tem esse valor do reencontro, do retorno com chave de ouro”. Ele explica o motivo dessa longa ausência, relacionando-a com a estabilidade financeira proporcionada pela televisão: “Televisão tem muita questão da grana. Você num contrato de televisão de meses, com um salário estável. E teatro é sempre aquela batalha, porém, é o lugar onde está o grande prazer em fazer”.

Elenco de Órfãos (foto: PH Costa Blanca Films)

PROJETOS

Ernani Moraes está em um momento ativo e vibrante de sua carreira, transitando entre diferentes papéis no teatro, cinema e televisão. Recentemente, ele comentou sobre seu trabalho na série Rensga Hits 2 para a Globoplay, dizendo: “Estou fazendo a segunda temporada do Rensga Hits 2, fazendo o pai da Alice (Lorena Comparato), no qual sou casado com a personagem da Lúcia Veríssimo. Trata-se de uma belíssima história, muita música, muita cantoria, muita fofoca, galera”. Ele também compartilhou detalhes sobre um novo filme: “Acabei de filmar em Campos do Jordão agora um filme chamado Juntos para sempre, com a direção do Adolpho Knauth. Esse filme deve ser para o ano que vem”.

Moraes também abordou sua participação na série Colônia, na qual viveu um fazendeiro em um contexto delicado: “Fiz um fazendeiro, um dono de fazenda, aquela coisa estranha, aquela temática delicada de escravidão, de maltrato que acabei de fazer”. Ele demonstra uma preocupação com os temas que envolvem seus personagens, especialmente os que tocam em feridas históricas.

Ernani Moraes em Torre de Babel, ao lado de Oscar Magrini (Foto: Divulgação)

Refletindo sobre o atual momento da teledramaturgia no Brasil, Moraes revela estar ciente das mudanças no setor e das novas demandas trazidas pelos streamings: “Eu percebo assim que o momento no Brasil para os streamings… A Record acabou com o núcleo de novelas deles, vários diretores da Record foram mandados embora. A realidade agora é outra, e os atores que não se adaptarem, e atrizes, se não se adaptarem à nova realidade, é chute na bunda, porque tem uma fila de pessoas atrás topando fazer o seu lugar. Então, estou tentando manter toda a dignidade…Tenho aceitado as produções, mesmo diante da nova realidade. Eu não quero botar um pijama e ficar reclamando da vida. Graças a Deus, eu estou trabalhando, é ótimo”.

Ao falar sobre a peça Órfãos e como ela aborda o tema da solidão, Moraes compartilha sua própria experiência vivendo em São Paulo: “Morei em São Paulo por 15 anos. Fiz teatro em São Paulo por 15 anos e morava num edifício com mais de 500 apartamentos aqui na Praça da República e eu não conhecia o meu vizinho de porta, e isso traduz muito o que é São Paulo. É uma cidade que vive na solidão. Todo mundo está sempre sozinho. Em 15 anos de São Paulo, eu nunca fui na casa de ninguém, as pessoas não se convidam para se visitar. Volta para casa e passa dez cadeados na porta, ficando dentro no seu mundo virtual, vendo televisão pela internet… É realmente uma doença terrível. Eu acho que a peça fala um pouco disso, traz um pouco essa esperança do contato, das pessoas se relacionarem”.

Sobre suas raízes pernambucanas, Moraes comentou sua saída precoce do Recife: “Saí muito novinho de lá do Recife para cá, para o Sudeste, com um ano, para o Rio de Janeiro e a cada dois anos ia passar o Natal e as férias no Recife, mas perdi o contato com a minha família. Minha relação mais próxima é com meu primo-irmão Lenine, também pernambucano, e temos uma ótima relação”.

Moraes também revelou um aspecto surpreendente de sua formação: “Eu sou físico também. A aula de física foi minha grande escola de teatro. Eu nunca fiz curso de teatro, escolas de teatro, nunca fiz. Eu fui direto para o palco. Eu costumo dizer que minha escola de teatro foi a sala de aula, quando por 12 anos dei aula em cursinhos pré-vestibular, treinando o ator que há em mim, entretendo 150 alunos… Se eu desse só aquela aula de cuspe e giz, as pessoas iam dormir… Minha aula era uma festa, os alunos me amavam. Só não continuei porque realmente se paga muito mal o professor”.

Embora tenha começado sua carreira televisiva tardiamente, Ernani foi reconhecido por personagens marcantes, mas sempre com o perfil do ogro: “A televisão para mim apareceu muito tarde, aos 38 anos. Eu fui chamado para fazer uma série incrível da Globo que era Memorial de Maria Moura, baseado na obra da Raquel de Queiroz. E era mais um troncho, o Tonho, que falava de um jeito meio estranho. Outro era o Quebra-Queixo de Como uma Onda, assim como o Boneca, de ‘Torre de Babel“.

Sobre o envelhecimento e a passagem do tempo, ele mantém uma perspectiva leve: “Ah, com muita naturalidade. Eu não encasqueto nem encuco. Acho natural ter poucos veteranos na televisão, as pessoas querem ver as moças lindas, os meninos lindos, o viço da beleza. Eu não fico amargurado, reclamando. Eu acho que é natural”.

Ernani Moraes, ao observar o presente, onde números e curtidas ditam caminhos, ergue uma bandeira pela essência perdida, pelo retorno à autenticidade. Sua trajetória se confunde com a própria luta da arte em se manter viva e verdadeira, diante de um mundo que, cada vez mais, privilegia o efêmero. No final, ele nos lembra que a arte, como a vida, não pode ser medida em seguidores, mas em momentos que tocam a alma e deixam marcas eternas.