Ao estrear manifesto ‘não espetáculo’ na porta dos teatros, Cristina Fagundes diz: Apontar dedo para ferida nas artes


Ao lado da também atriz e diretora Ana Paula Novellino, Cristina estreia “Não-Espetáculo – O Teatro Possível” nas portas dos teatros fechados no Rio. A dupla fala da sobrevivência neste mais de um ano de pandemia e de políticas públicas. “Estamos vivendo, além do medo constante da morte por Covid-19, seja a nossa ou a de alguém querido, a falta de esperança. Vejo muito colegas de profissão passando aperto ou deprimindo. O movimento vem para provocar reflexão e apontar o enorme vazio que nós artistas estamos sentindo em não podermos exercer nosso ofício”, diz Cristina

*Por Brunna Condini

Estamos vivendo o primeiro evento global de trauma coletivo em décadas. São tempos duros para os sonhadores e que vem exigindo de nós resiliência e resistência extras. Estamos todos sob as ameaças da epidemia, mas não estamos todos no mesmo ‘barco’. As consequências econômicas da crise de Covid-19 afetaram a cultura de forma mais severa do que se esperava, por exemplo. Tem sido um verdadeiro ‘cataclisma’ para a classe artística diante da escassez de trabalho e a falta de políticas públicas para o setor. Mas artista que é artista só consegue existir, seguir, criando. E é isso que as atrizes Cristina Fagundes e Ana Paula Novellino se propõem a partir desta quarta-feira (19) com o ‘Não-Espetáculo – O Teatro Possível’, performance que será executada sempre às quartas, na porta de teatros que seguem fechados em função da pandemia. Sem pauta, elas vão se sentar ao ar livre para nada fazerem, munidas apenas de duas cadeiras portáteis. A estreia será no Gláucio Gill, em Copacabana. “É um grito de liberdade, uma provocação necessária em meio a uma sufocante impossibilidade artística”, ressalta Ana.

Cristina Fagundes e Ana Paula Novellino fazem o 'Não-Espetáculo' a partir desta quarta-feira: provocação sobre a realidade artística atual (Foto: Renato Mangolin)

Cristina Fagundes e Ana Paula Novellino fazem o ‘Não-Espetáculo’ a partir desta quarta-feira: provocação sobre a realidade artística atual (Foto: Renato Mangolin)

O quanto a emociona fazer esse ‘não espetáculo’, quando se tem tanta vontade de subir ao palco? “Nossa, nem me fale. Vai ser doloroso, pois é fora do palco. É apontar o dedo para a ferida, justamente estando fora de cena, mas ao mesmo tempo dá um fio de esperança fazer essa performance, porque ela vem para provocar reflexão e apontar o enorme vazio que nós artistas estamos sentindo em não podermos exercer nosso ofício. Estamos sem condições de trabalho e estou muito aliviada de finalmente estar conseguindo manifestar toda essa frustração”, desabafa Cristina. “Como não há texto, figurino, personagens, cenário, nada, não há como se frustrar. Não há como um não-espetáculo ser cancelado. Ele é à prova de crise e, por não existir, não pode acabar, provando ainda ser possível fazer arte”.

"Como não há texto, figurino, personagens, cenário, nada, não há como se frustrar. Não há como um não-espetáculo ser cancelado" (Foto: Renato Mangolin)

“Como não há texto, figurino, personagens, cenário, nada, não há como se frustrar. Não há como um não-espetáculo ser cancelado” (Foto: Renato Mangolin)

O ‘Não-Espetáculo’ é um caminho possível apontado pelas atrizes para os artistas não se frustrarem em meio a tantas dificuldades e incertezas como a pandemia. Estão preparadas para o que vier na rua? “Estou aberta ao que vier de negativo ou positivo. Estou disposta a viver essa experiência. Pode vir agressividade, até porque estamos num momento de intolerância e incompreensão muito grande em geral e em relação aos artistas. Mas acho que pode ser muito emocionante também. Já estou impressionada com a comoção que alguns colegas artistas manifestaram antes mesmo de estrearmos. Estou animada e otimista. E experimentando uma grande alegria de ter conseguido falar dessa nossa angústia. Sinto que estamos sofrendo cada um no seu quadrado e sem saber como reagir a isso tudo. Têm sido muitos dissabores”, diz Cristina. “Conto com a presença de Dionísio. Creio que este nunca nos abandona. A rua é sempre uma surpresa”, completa Ana.

"Sinto que estamos sofrendo cada um no seu quadrado e sem saber como reagir a isso tudo. Têm sido muitos dissabores”, diz Cristina (Foto: Renato Mangolin)

“Sinto que estamos sofrendo cada um no seu quadrado e sem saber como reagir a isso tudo. Têm sido muitos dissabores”, diz Cristina (Foto: Renato Mangolin)

“Estamos vivendo um período terrível para os artistas. O pior que já vi. Sem público, sem verba, com os teatros sucateados ou fechados e sem políticas públicas de cultura. Há toda uma cadeia de trabalhadores sem poder exercer seu ofício devido ao contexto atual. Estamos todos frustrados, cansados e sem perspectiva. O cenário é de desalento. A Lei Aldir Blanc foi um respiro importante nesse contexto de impossibilidades, mas é preciso muito mais”, aponta Cristina Fagundes. “Estamos vivendo, além do medo constante da morte, seja a nossa ou a de alguém querido, a falta de esperança. Vejo muito colegas de profissão passando aperto ou deprimindo. Tem movimentos dentro da própria classe acontecendo, como o que a APTR tem feito. Mas são muitas crises a enfrentar: econômica, política, sanitária… temos um governo que não dialoga com os artistas. Não gosta dos artistas”.

Resistência e legado

Falando em legado artístico, Ana Paula Novellino aproveita o momento para exaltar a atriz Eva Wilma que morreu no último domingo. “Meu filho de 13 anos me perguntou quem era a atriz que morreu e estou empenhada em mostrar. Sempre me assombro quando ele faz tais perguntas. Tipo, qual é o Chico e qual é o Caetano? Aí eu começo a mostrar tudo”, conta. E para quem mandaria um papo reto? “Meu papo reto é para o Dudu (Eduardo Paes). Prefeito, cuida dos nossos teatros”, frisa Ana.

Criar tem sido meu caminho para não ficar mal de cabeça. Minha válvula de escape. Porque criar é em si um ato de esperança” (Foto: Renato Mangolin)

“Criar tem sido meu caminho para não ficar mal de cabeça. Minha válvula de escape. Porque criar é em si um ato de esperança” (Foto: Renato Mangolin)

Que teatro é esse que vai ser feito pós pandemia? “Acho que estamos investigando novas possibilidades, mas no fim o bom e velho teatro presencial vai voltar. Ele é imprescindível. O teatro é quando o ser humano se olha nos olhos”, diz Cristina, que avalia que tem vivido um dia por vez desde que isso tudo começou. “No inicio da pandemia me reinventei fazendo teatro em lives no Instagram. Depois criei uma peça especialmente para o zoom. Agora que falta verba, público e palco, me reinventei criando um teatro que é ‘infrustrável’, posto que não existe. É o conceito de ‘Não-Espetáculo’. Nada pode cercear um Não-Espetáculo. Foi minha forma de lidar com essa realidade kafkiana e com a preocupação com o dia de amanhã.  Criar tem sido meu caminho para não ficar mal de cabeça. Minha válvula de escape. Porque criar é em si um ato de esperança”.

Na opinião de vocês, o que quem lidera a nação, os governantes, que muitas vezes  ignoram as necessidades do povo, deveriam passar por um dia nesta pandemia? “Acho que seria curioso se tivesse alguma lei universal que desse aos governantes, líderes iguais a eles. Assim, um bom governante teria também seu próprio governante, que seria um homem bom. Um governante que desviasse dinheiro de oxigênio, deveria ter um governante que também roubasse oxigênio. Algo assim”, opina Cristina. “E fazer um plantão numa UTI de Covid-19”, completa Ana.