*Por Alexei Waichenberg
Dias de pouco, véspera de muito, já dizia a minha avó. Tento crer, mas se já não conseguimos compreender os dias que vivemos e os que nos esperam, o que será do amor?
Nuvens de gafanhotos, a peste viral, a tragédia recaindo sobre nós humanos sem aviso e sem precedentes. Uma polarização desmedida, descabida e desonesta vem apagando os vestígios de afeto e da alegria, que nos era mais cara e mais vantajosa. Um povo em sofrimento e a esperança a sucumbir diante da irresponsabilidade de como a humanidade resolveu cuidar do seu habitat e dos seus semelhantes. A mediocridade apaga as memórias e não crê em melhor destino.
Mas, eu acredito no amor. Vou lutar por ele com a única arma da qual disponho e abater a solidão purgatória com o que puder lembrar e dividir com vocês. Vou me cobrir de coragem e me proteger para que os meus desejos alcancem o que para mim é o único destino permitido: a troca.
Para alegrar os dias da batalha deflagrada, eu resolvi publicar um conto, sem final açucarado, mas baseado numa verdadeira história de amor, que vivi faz um bocadinho. Ele remonta cenários, disfarça os dias tristes, e passa um paninho umedecido com álcool gel para desinfetar os maus pensamentos, que assolam as nossas jornadas. Viaja comigo sem sair de casa?
Por volta das 5 da tarde chegamos, como combinado, ao apartamento da Rua do Cairo, número 42, no segundo distrito da Vila. Código na porta – A8369. Subimos pela escada até o terceiro andar, carregados de valises e tocamos a campainha da porta da esquerda. Uma senhora abriu bastante animada. Sua filha também correu para nos recepcionar. Parecia que elas não recebiam uma visita há muito tempo. Bem…, logo descobrimos que estávamos tocando a porta errada. Nosso agente de locação, também amigo de longa data, havia se atrasado. Descemos, ainda que tentando compreender a mudança climática e tentando recuperar as forças depois de 15 horas de avião. Logo chegou o Eduardo na sua galícia bicicleta. Um pequeno papo de recepção, um tubo com ervas frescas para meu convidado e duas garrafas do bom champanhe nacional.
Assim que o Edu saiu começamos a reconhecer nosso lar, brindar e identificar onde trocaríamos as nossas experiências pela próxima semana. Andávamos pela Vila toda, pela vida toda, e pra mim a única novidade era novamente ver a reação do meu parceiro. Sim, tudo era novo na velha Vila. Para cada caminhada ele desfilava uma sofisticada indumentária, como se a Vila o fotografasse ou emprestasse a ele sua luz milenar. E, com efeito, o fazia. Que rapaz bonito, encantador eu diria. Na verdade, eu já sabia que aqueles olhos, da cor certa, me encantavam e me confessariam logo breve o seu amor, o seu deslumbramento…e pasmem, pelo que não se pode ver.
À noite, quando a chuva nos deixava alcançar de volta o quarteirão egípcio, nos debruçávamos um no outro. Ele na sua poltrona de frente para os telhados e eu na minha, a contar histórias cheias do amor de ontem. Pouco falávamos do museu da estação, do museu do palácio, da igreja gótica, da basílica na colina, da torre faraônica, das odes arquitetônicas ao triunfo. Não, nós falávamos de nós. Dizíamos do amor que não sentíamos mais por ninguém.
Já estávamos há 4 dias de vitrines e grifes, de monumentos, de gorros e cachecóis, de troca de estações e, mesmo que ele vestisse cores sóbrias, quase como um cidadão exemplar daquela Vila, tudo que o encantava eram os coloridos. A geladeira listradinha, as mochilas camufladas, as tintas tuti-frutti de cada assunto que eu entoava. Cantamos pelas ruas até em uníssono, como se pudéssemos reconhecer os registros de cada dor que atravessamos, como se as pontes pudessem nos levar às ilhas nas quais transformamos nossos corações, para que o amor não nos pudesse invadir.
E o olho da cor certa brilhava, mais que os diamantes pregados no sapato esportivo, mais que a lágrima do indizível, mais do que eu pude sonhar … e ofuscava o meu pensamento, aquecia descoordenado o meu desejo. Afinal, não conseguimos, eu e meu companheiro de viagem, regular o aquecimento do apartamento, no terceiro andar, com porta à DIREITA do corredor.
É assim o peito, esquerdo ou direito, com ou sem defeito – Frio demais, quente demais. Dormíamos nossos corpos exaustos lado a lado, cúmplices, como se fossemos um só. Não nos tocamos, é verdade. Mas pousamos nossas mãos, juntos, na pia do batismo de sangue do Nosso Senhor Coração.
Para coroar, em cada garrafa de bom bordô que tragamos, plantamos nossas virtudes coloridas e, nosso jardim, de tulipas embriagadas, tinha mais a dizer que os nossos corpos reumáticos pelas infinitas caminhadas nas vielas ensanguentadas pelo terror que viveu Paris nos dias antes de chegarmos. Nos alimentamos como reis quando se encontram. Deixamos muita saudade, breves prantos de encantamento. Satisfizemos nossos lábios com óleo de pomelo e manteiga borguinhona.
Uma viagem de amor narcótico, estou seguro. Talvez a mais evidente. Sabem por que? No dorso deste bom parceiro estava escrito todo tempo: O essencial é invisível aos olhos.
Vamos à zona franca, onde compramos sonhos e vendemos nossas memórias. As fronteiras sempre estarão abertas para que mundo afora possamos fincar o nosso amor, por vezes impublicável, mas visível a qualquer distância.
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