Aline Borges faz peça refletindo sobre loucura e lugar da mulher na sociedade e fala da experiência com o pânico


A atriz estreia ‘Caralâmpias’ que tem como ponto de partida o encontro no Hospital Psiquiátrico do Engenho de Dentro entre Dona Ivone Lara, Maura Lopes Cançado e Nise da Silveira, mulheres que criaram novas possibilidades de existência através da arte. Aqui, Aline fala sobre a importância e a atualidade dos temas colocados em cena, sobre a loucura usada para descredibilizar a mulher, de ancestralidade, potência e de não subestimar a atenção à própria saúde mental. “Tenho sentido há algum tempo uma falta de ar desesperadora, uma sensação que vou morrer engasgada a qualquer momento. Isso simbolicamente diz muito. Esse pânico foi crescendo de tal modo, que de fato eu quase morri engasgada uma tarde, com um pedaço de pão”. revela

*Por Brunna Condini

Em um mundo onde a maior exemplo de loucura são as guerras ainda travadas, o que é ou não sanidade (ou insanidade) ainda está em uma esfera que não leva em conta somente a questão da saúde mental. É dentro deste contexto, pensando sobre o tema, sobre arte, loucura e o lugar da mulher na sociedade atual, que ‘Caralâmpias‘ estreia no Rio, tendo Aline Borges à frente de um elenco, que traz também Alice Morena e Lisa Eiras em cena. Após experimentar uma maior visibilidade com sua Zuleica de ‘Pantanal’ (2022), Aline acredita no poder da arte para colocar no centro da roda assuntos que façam realmente a diferença na vida em sociedade. “Loucura é a gente amortecido diante do genocídio da população indígena e preta. Loucura é a naturalização da fome no Brasil. É o racismo, a homofobia, o feminicídio, tudo isso faz parte de uma grande loucura”. O espetáculo costura histórias de Dona Ivone Lara (1921-2018), Maura Lopes Cançado (1929-1993) e Nise da Silveira (1905-1999), mulheres extraordinárias que criaram novas possibilidades de existência através da arte no hospital psiquiátrico do Engenho de Dentro, e convida à reflexão.

Aline também chama à atenção, para o fato de que ao longo da história, e ainda hoje, aprisionam mulheres no conceito de ‘loucas’, para desvalorizá-las e descredibilizá-las:

E não tem como fugir disso na peça. As mulheres até hoje são a grande maioria nos hospitais psiquiátricos, e mulheres negras! O mundo ainda dominado por homens e brancos, se nega a enxergar a potência das mulheres, então diagnosticar uma mulher como louca é podar suas asas, é mantê-la sob domínio, sem que possa se movimentar no sentido de colocar foco na transformação necessária pra evolução de um modo geral – Aline Borges

Aline Borges estreia espetáculo que propõe reflexão sobre saúde mental, arte, loucura e o lugar da mulher na sociedade atual (Divulgação)

Aline Borges estreia espetáculo que propõe reflexão sobre saúde mental, arte, loucura e o lugar da mulher na sociedade atual (Divulgação)

Segundo especialistas e órgãos oficiais, o Brasil vive uma segunda pandemia, agora envolvendo a saúde mental. Pensando sobre a marginalização do tema, a atriz aborda. “A gente vive um caos excessivo e diário, não há bem-estar que suporte tamanha tragédia, tamanha desumanidade. A saúde mental está em foco porque de fato estamos em estado de alerta vermelho há tempos. A Amazônia em chamas, guerra na Palestina, nas comunidades, caos na saúde, na educação, violência, feminicídio, fome, pandemia, descaso, surto e mais surto. É uma panela de pressão prestes a explodir violentamente”. E compartilha:

Tenho sentido há algum tempo uma falta de ar desesperadora, uma sensação que vou morrer engasgada a qualquer momento. Isso simbolicamente diz muito. Esse pânico foi crescendo de tal modo, que de fato eu quase morri engasgada uma tarde, com um pedaço de pão. Foi desesperador, e me engatilhou profundo. Busquei então pela primeira vez na vida, apoio psicológico, tomei coragem e fiz minha primeira sessão de análise – Aline Borges

Ainda sobre o tema e os sinais que não subestimou, Aline completa. “A espiritualidade me ajuda muito no meu processo de evolução, faço meus rituais, consagro a Ayawasca, tenho meus guias, sou filha de Oxum. Mas a análise me chegou num momento importante, pra complementar meu processo de autocuidado”.

Aline posa nos bastidores da peça: "A espiritualidade me ajuda muito no meu processo de evolução" (Divulgação)

Aline posa nos bastidores da peça: “A espiritualidade me ajuda muito no meu processo de evolução” (Divulgação)

Caso de amor com o streaming

Com quase 30 anos carreira, Aline admite que ‘Pantanal’ foi um marco importante em sua trajetória, tanto, que depois do folhetim da Globo ela assinou com três streamings diferentes e para fazer personagens bem plurais. “A série ‘B.O’ estreou agora na Netflix e foi um grande sucesso, que me deixou muito feliz porque tinha tempo que não fazia comédia. Amei trabalhar com o Leandro Hassum, ele é genial, além de generoso ao extremo. E estamos em um momento onde a comédia é muito bem-vinda, haja vista que estamos sangrando todos os dias”, constata a atriz. “Também estou na terceira temporada de ‘Dom’, série da Amazon Prime Video, que tem previsão de estreia em 2024. A série é um sucesso e minha personagem chega para trazer um pouco de frescor para a trama, ela se envolve com o Vitor, pai do Dom, que é um cara mergulhado no drama de tentar tirar o filho do vício das drogas. Então foi um encontro muito bonito, que promete encanto aos olhos. Assim espero (risos)”.

Leandro Hassum e Aline Borges em cena da série "B.O.' da Netflix (Divulgação/Netflix)

Leandro Hassum e Aline Borges em cena da série “B.O.’ da Netflix (Divulgação/Netflix)

E fecha: “Em ‘Arcanjo Renegado’ (série Globoplay), minha personagem Joana, volta na terceira e quarta temporadas. Esse é um trabalho bem diferente de todas as outras personagens, apesar de ser uma mulher forte, inteligente, é totalmente envolvida com a política, se corrompe um pouco, deixa dúvidas em relação ao seu caráter. Enfim, um jogo de poder que exige perspicácia e foco. Uma personagem desafiadora, gostosa de fazer. Vale ressaltar que ‘Arcanjo’ traz várias mulheres em cargos de liderança, muitos talentos pretos no elenco, isso é sobre construir novas realidades, é um compromisso ancestral que o Zé Junior, idealizador do projeto, busca manter sempre. Lá tive a honra de estar juntinho de Dona Léa Garcia (1933-2023), que já se encantou, mas segue forte e eterna na nossa memória!”.

Aline Borges e dona Léa Garcia nos bastidores de 'Arcanjo Renegado' (Reprodução/Instagram)

Aline Borges e dona Léa Garcia nos bastidores de ‘Arcanjo Renegado’ (Reprodução/Instagram)

Caralâmpias

Em 1959, o cenário era de um Rio de Janeiro, que tinha na Zona Sul a promessa de alegria e de futuro, mas do outro lado da cidade, muito longe desse prestígio, a escritora Maura Lopes Cançado estava internada pela segunda vez no Hospital psiquiátrico do Engenho de Dentro, de onde escreveu ‘Hospício é Deus – Diário I’. Também estavam lá a psiquiatra Nise da Silveira, e Yvone Lara, futura compositora e sambista Dona Ivone Lara – as duas trabalham na Sessão de Terapêutica Ocupacional. Nise trabalhou no Hospital durante décadas implementando uma série de mudanças para um tratamento mais humanizado dos internos, utilizando para isso ferramentas como pintura e encabeçando a reforma psiquiátrica no país. Dona Ivone foi enfermeira e terapeuta ocupacional fundamental nesse mesmo processo, por 38 anos, enquanto compunha mais de 300 canções, se tornando a primeira mulher a assinar um samba enredo e a primeira a integrar uma ala de compositores de uma escola de samba. É o encontro destas três que ‘Caralâmpias’ oferece. “O espetáculo traz luz a história de três mulheres pioneiras, revolucionárias, porque eu acredito na potência das mulheres na transformação e construção de um mundo mais equilibrado. E também porque precisamos urgentemente olhar com responsabilidade pra questão da saúde mental no Brasil”, salienta Aline.

Alice Morena, Aline Borges e Lisa Eiras : no camarim durante os ensaios de 'Caralâmpias' (Divulgação)

Alice Morena, Aline Borges e Lisa Eiras : no camarim durante os ensaios de ‘Caralâmpias’ (Divulgação)

O título ‘Caralâmpias‘, vem da expressão cunhada por Nise da Silveira que, quando criança, apaixonou-se por essa palavra e com ela batizou sua cadela. Mais tarde, quando foi presa política pela ditadura de Vargas, ficou amiga de Graciliano Ramos (1892-1953) na prisão e os dois passaram a definir as pessoas em ‘Não Caralâmpias’ e as ‘Caralâmpias’ sendo as pessoas resistentes, potentes, que não esmoreciam. Graciliano passa a chamar Nise de Caralâmpia desde então. A montagem amplia a voz de Nise e das duas mulheres geniais que através de suas potências também desafiaram as noções convencionais de arte, loucura e o papel da mulher em nossa sociedade. Para Aline, as reflexões propostas em cena ainda reverberam nos dias atuais e na realidade de muitas mulheres, inclusive na dela própria. “Acho que sendo mulher e negra, cotidianamente a gente passa por situações onde somos invalidadas e tidas como loucas, a negra raivosa, histérica, enfim, tudo para realmente minar nossas forças”.

Ser mulher e negra no Brasil não é fácil! Mas eu me fortaleço me conectando com a minha ancestralidade, reconhecendo minha própria história, que é de luta e resistência. Saber de onde eu vim, me fortalece para chegar onde quero chegar – Aline Borges

Aline Borges, Alice Morena e Lisa Eiras em arte do espetáculo 'Caralâmpias' (Divulgação)

Aline Borges, Alice Morena e Lisa Eiras em arte do espetáculo ‘Caralâmpias’ (Divulgação)