Após o sucesso de ‘Ilhada em mim – Sylvia Plath’, a companhia paulistana Estúdio Lusco-Fusco vai comemorar o aniversário de 10 anos do grupo com o espetáculo ‘Tchekhov é um cogumelo’. A montagem é uma adaptação de ‘As Três Irmãs’, do dramaturgo russo Anton Tchekhov, que se dedica a contar esta história com uma pegada mais psicodélica e introspectiva, tendo a memória como base. Idealizado pelo diretor André Guerreiro Lopes, a peça retrata a vida destas três mulheres que estão presas ao seu passado em um mundo que respira transformações. “Quis colocar em cena as inquietações do nosso país. Queria conversar diretamente com a nossa situação atual, já que somos como elas e estamos em um Brasil de incertezas. Vivemos uma série de retrocessos violentos como foi o caso do escritor, já que esta peça foi redigida no período que antecedeu a Revolução Russa. Acho que não sabemos o que estamos vivenciando atualmente e, por isso, qual caminho devemos tomar”, explicou o diretor, que foi completado pela atriz Michele Matalon, que faz a irmã do meio: “Existe uma atualidade, porque estas personagens não têm saída e acreditam em algo que vai acontecer, mas este momento, realmente, as coisas não estão bem”. A adaptação está em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil e foi indicada ao Prêmio APCA de Melhor Espetáculo de 2017, ao Prêmio Shell de Melhor Música e eleita um dos Três Melhores Espetáculos do Ano no júri dos críticos do Jornal Folha de SP.
As diferenças são muito expressivas nesta montagem e isto é perceptível a partir do título. O nome da peça é uma clara referência a uma entrevista dada pelo próprio André ao diretor José Celso Martinez Corrêa, em 1995. Na época, ele era estudante de teatro e estava fazendo uma pesquisa sobre ‘As Três Irmãs’ e por isso resolveu conversar com o mais velho para entender como foi o processo de criação deste texto em 1972, quando era membro do Teatro Oficina. “Aquela adaptação foi muito polêmica por fazer os seus ensaios a base de alucinógenos, contrariando toda a rigidez da época da ditadura militar. A ideia era chegar à essência do entendimento deste texto. Embora fosse radical, foi um projeto muito substancial”, garantiu. Dessa forma, André resolveu revisitar este trabalho e misturar esta lembrança com o universo ficcional de Anton Tchekhov.
Esta entrevista do passado acabou sendo o mote para a criação do espetáculo e norteou o caminho que o diretor seguiu com esta adaptação. “A memória emotiva é essencial na peça e recuperar estas lembranças é um método que eu trabalho sempre para a criação dos meus personagens”, afirmou a atriz Helena Ignez. Muitas recordações foram usadas para recontar esta história, afinal, temos a das três irmãs, a do José Celso Martinez Corrêa e também a do próprio André. Exatamente por isso que ele resolveu aparecer na própria montagem. Ele fica em cena, no canto do palco, em um estado meditativo com um capacete de eletrodos na cabeça que capta a sua atividade cerebral durante toda a exibição. “Decidi ficar em cena porque eu, de certa forma, sou o elo entre todas estas nuances, afinal o espetáculo é a reunião de todas as minhas memórias e estamos falando de um universo cerebral. Por isso, utilizo este capacete que capta as minhas atividades cerebrais e acaba criando som e luzes a partir disto”, salientou.
O diretor André Guerreiro Lopes não teve medo de alterar o texto do russo. Uma das grandes mudanças feitas pelo próprio é ampliar a idade destas três irmãs, que originalmente possuíam um espaço de no máximo três anos de diferença. Nesta adaptação, as atrizes DjinSganzerla, Helena Ignez e Michele Matalon são de gerações distintas. “Eu quis embaralhar e expandir um pouco a ideia de tempo e memória. Sendo assim, são três mulheres que podem ser interpretadas em momentos diferentes da vida. Elas são assim devido às várias alterações que estão acontecendo naquele momento e que não sabem lidar”, explicou. Para a artista mais nova dentre estas protagonistas, esta diferença acaba por deixar o espetáculo mais atemporal. “Ele manteve a essência do texto, mas expandiu este lado poético e trouxe outras camadas e possibilidades, o que torna a montagem mais contemporânea. Por exemplo, existe um lado mais pictórico das artes plásticas”, afirmou DjinSganzerla, que é filha de Helena Ignez, na vida real, e produtora do espetáculo.
Outro detalhe interessante é que André resolveu condensar o texto e só colocar as cenas mais importantes para compreensão do espectador. A partir disto, ele resolveu inserir todas as falas dos homens nas protagonistas. “Assim como as três irmãs, eu também quis manter a força dos personagens masculinos. Na peça original, eles filosofam, mas são infantis. Por isso, resolvi retirar a oralidade para aumentar este caráter estúpido deles. Isto acaba funcionando como um grande contraste com a figura mais doce das mulheres. Este duelo interno delas vai ganhando mais vitalidade quando eles aparecem e, ao mesmo tempo, um movimento de destruição. É como se a hipocrisia fosse crescendo e mostrando este vazio”, explicou. O elo que ligaria estes dois mundos seria o cantor Roberto Moura que acaba conseguindo passear pelos pólos.
Além de perder o poder de fala, os personagens masculinos também são condensados em apenas dois dançarinos neste espetáculo. A comunicação funciona unicamente através da linguagem corporal. “Representamos um lado mais insensível, pouco reflexivo e inteligente que está muito em voga. São pessoas mais brutas. Obviamente, nem todos são assim e não temos apenas esta característica, mas esta dramaturgia russa contribui para mostrarmos este arquétipo do ‘machão’”, informou Samuel Kavalerski, que é o dançarino que representa este grupo junto com Fernando Rocha.
Todas estas modificações substanciais foram feitas coletivamente. O diretor passou três meses ensaiando com as três atrizes para pode adaptar o texto e ir colocando a essência de cada um. “O processo de criação foi muito interessante e desafiador, porque muita coisa não nasceu da dramaturgia. O diretor criou imagens e sentidos através do corpo e depois o roteiro foi se encaixando. Foi quase uma concepção imposta, em vez do texto ir para a ação, a ação acaba nos levando ao texto”, relembrou DjinSganzerla.
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