De volta à sua cidade natal, a pianista Sylvia Thereza se apresenta nesta quinta-feira às 20h na Sala Cecília Meireles, na Lapa. A carioca, que mora e trabalha na Bélgica, estava há cinco anos sem fazer um recital para o público do Rio. No concerto de hoje à noite, Sylvia apresenta um repertório romântico com composições de Bethoven, Chopin, Schumann e Liszt. Em entrevista ao HT, a pianista contou que, além de serem músicas que ela já vem estudando e tocando há algum tempo, as escolhas também mostram um ideal bem mais profundo do que o normalmente abordado. “Os compositores românticos foram os primeiros a lutar contra a música como somente um entretenimento. Eles a tinham como uma arte que pode passar uma mensagem muito mais profunda, inclusive para formar o caráter humano. Então, nesse sentido, eu me identifico muito com esse repertório porque, nesse momento, acontece no mundo inteiro um movimento de fazer com que as artes estejam acima de um mero entretenimento”, explicou.
Sylvia, que considera o público carioca “maravilhoso e muito participativo”, vai ter na plateia de hoje 40 convidados especiais. A pianista contou que, pela primeira vez, jovens de um projeto social da comunidade Parque Unidos, em Acari, vão a um teatro acompanhar um recital de piano. Sobre esse movimento social dentro da comunidade da Zona Norte do Rio, Sylvia Thereza disse que foi criado por um senhor e ainda nem foi batizado. “Olha, para você ter uma ideia, esse projeto não tem nem nome ainda. Tudo começou com esse homem que resolveu dedicar a sua vida a esses meninos lá em Parque Unidos, que nem pacificado é e tem a presença do tráfico fortemente armado. Então, ele resolveu morar dentro da favela e começar a fazer esse trabalho com as crianças com aulas de jiu-jitsu, reforço escolar e música para tirá-las da prostituição e tráfico”, explicou.
E não é de hoje que Sylvia Thereza tem essa preocupação e motivação social. Em 2010, a pianista carioca criou o projeto “Música Dá Futuro”, em parceria com o colega Nivaldo Tavares. Durante esse período, Sylvia percorreu diversas escolas da Zona Oeste da cidade levando a música clássica às escolas. E, segundo ela, conseguiu atingir mais de 12 mil crianças que antes não tinham acesso a esse tipo de arte. “Essa experiência foi muito emocionante. A primeira pergunta que esses meninos faziam era ‘E aí tia, vai ter funk?’. Durante essa jornada, a gente levava o piano para as escolas e ficava acampado lá por uma semana tocando e iniciando os jovens na música e nas artes de um modo geral. E, o que acontecia eram reações das mais absurdas. Eu toquei para um auditório com 600 crianças todas deitadas e em silêncio. Foi tão incrível que a própria diretora da escola veio falar comigo chorando que aquele momento era um sonho para ela. Outra vez, enquanto eu tocava Chopin, um menino puxou a minha saia perguntando se podia chorar. Já em outra ocasião, um senhor me disse que queria muito ir nao Theatro Municipal, só que não tinha roupa, e queria saber se poderia ir de calça jeans. Enfim, são situações supertocantes e que nos fazem refletir”, relembrou. E completou: “A música transforma o ser humano. Ela fala de sensações que, muitas vezes, as palavras não conseguem dar conta. O poder dessa arte é um negócio que até hoje me surpreende. É um momento de paz de outro planeta”.
E, apesar da reação inicial dos jovens ter sido o interesse pelo funk, por exemplo, Sylvia destacou o quão mexidos os alunos das escolas ficavam após a apresentação da pianista carioca. “Os meninos são super musicais e interessados, mas, totalmente esquecidos. Eu acho que a arte maior e mais profunda precisa ser levada para todos. E não é. Então, a gente achar que a expressão cultural deles se limita a achar que esses meninos não gostam de música clássica não é verdade. Eles apenas não conhecem e não tem acesso. Depois desse projeto que eu fiz, eu recebi mais de seis mil cartas de jovens me pedindo escolas de música nessa região. Afinal, não há na Zona Oeste nada parecido com isso. Agora, existem muitos projetos sociais. Mas, uma escola de música de excelência para esses meninos não tem”, declarou.
Ingressos caros e teatros distantes dessas áreas da cidade são alguns fatores que Sylvia Thereza destacou como motivos que potencializam essa falta de democratização da música clássica. E, segundo ela, a falta de acesso dessa cultura às massas é, exclusivamente, por uma questão de educação. “Essa foi a luta dos grandes compositores, para que a música falasse ao povo, e não à corte. Só que é um tipo de arte muito transformadora, e a população carente é a que mais percebe a profundidade desse tipo de música. Eu já toquei para as plateias mais diversas e refinadas e eu afirmo que os jovens de comunidades são os melhores públicos de um recital. Só que eles não têm acesso porque a política cultural, nesse sentido, não é tão bem feita”, opinou a pianista que, para levar essa arte a todos, já tocou até em canteiro de obras.
Sylvia, que foi para a Bélgica ser professora de uma das escolas de música mais importantes do mundo, a Chapelle Musicale Reine Elisabeth, a convite da pianista Maria João Pires, disse que lá na Europa não existe tanta diferença cultural como em seu país. “Lá, eles têm um movimento que se preocupa em musicalizar os jovens. Porém, eu não vou te dizer que tem um problema mundial da superficialização do entendimento da arte. Isso existe em alguns lugares da Europa porque os tempos estão menos aprofundados, mas o acesso está aí. No entanto, isso que eu acho um pouco cruel aqui, porque no nosso país nem todo mundo tem essa chance de conhecer a arte a fundo”, argumentou.
Bom, já percebemos que Sylvia, além de apaixonada pela música clássica, é uma grande incentivadora e democratizadora dessa arte. Por isso, fomos atrás de entender o começo dessa relação da pianista com seu instrumento de paixão. Ah, e engana-se quem pensa que ela já tinha em casa ou convivia com o piano na família. “Eu vi em uma aula de balé e fiquei apaixonada pelo instrumento. Eu ficava tocando na mesa da cozinha até o meu pai conseguir me dar um piano. Mas a vida foi sempre muito difícil em relação à educação. O Brasil tem muitos bons professores, mas se você quiser ir para fora estudar, não existe apoio. Nas artes, se você se destacar, não tem um incentivo para ir para fora do Brasil. É muita luta ser artista aqui”, contou.
E hoje, com sua carreira na Europa e vendo a situação do nosso país de fora, Sylvia destacou que muitos assuntos estão sendo discutidos por aqui, porém, não é abordado o centro do problema. “A situação está muito incompleta. Eu não sei qual a política nova desse governo que está mudando tudo. Mas na anterior, eu também não via muitos benefícios nessa área. O que eu acompanho lá de fora é que o Brasil poderia ser um exemplo de país para o mundo. Nós temos gente talentosa, somos nação rica e poderíamos dar exemplo na ecologia, música e em tantas outras áreas. Mas não acontece isso. Não existe uma política social que dê exemplo. Por isso essa desigualdade na sociedade do país. Para mim, é inadmissível que um país tão rico tenha tantas diferenças assim. O problema aqui está desde o início, na educação dos jovens, em que não há uma preocupação real com o que é transformador na vida de uma pessoa”, opinou a pianista Sylvia Thereza.
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