*Por Jeff Lessa
Quinze anos depois de coestrelar “O Segredo de Brokeback Mountain” com Heath Ledger (1979-2008), Jake Gyllenhaal voltará a interpretar um personagem gay no cinema. O ator será o pai da cartunista Alison Bechdel, autora da sensacional graphic novel de 2006 que deu origem ao musical “Fun Home”, do qual o filme será adaptado. A peça retrata a vida de Alison narrando lembranças de sua família estranha e nada funcional, mas que, surpreendentemente, funcionou muito bem para a artista, conhecida pelos cartuns de “Dykes to Watch Out For”, que tratam de relacionamentos entre lésbicas desde os anos 1980.
A narrativa teatral, criada por Lisa Kron e Jeanine Tesori, não é linear, longe disso. Viaja ao passado e volta ao presente diversas vezes, mostrando Alison em três momentos: criança, na casa funerária onde cresceu (fun home é uma das gírias americanas para funerária); na faculdade, quando resolveu sair do armário; e atualmente, enquanto desenha os cartuns de sua premiada e original autobiografia. O musical é centrado na história do desenvolvimento de uma mulher que está se descobrindo, ao mesmo tempo que foca na trágica história de seu pai, um homem gay que não se assumia para a família e os amigos e, aparentemente, optou pelo suicídio (a causa da morte de Bruce Allen nunca foi 100% estabelecida. Alguns acreditam que ele pode ter morrido de acidente). No palco como no livro, pouco depois de revelar à família que é lésbica, Alison Bechdel se concentra na dolorosa e comovente relação com o pai.
Em 2015, “Fun Home”, recebeu sete Tonys, inclusive o de melhor musical. Da estreia num teatro off-Broadway para o circuitão, foi um pulo. Depois dessa “gentrificação”, o musical passou a ser considerado um marco pela militância LGBTQ por ter sido o primeiro de seu gênero a ter uma protagonista lésbica na Broadway. A graphic novel, lançada em 2006, revolucionou o nicho das autobiografias por usar quadrinhos para contar a vida de sua autora, que passou anos sem coragem de revelar a história familiar.
Numa entrevista para a “Publishers Weekly” na época do lançamento, ela afirmou que a cultura “realmente” havia mudado. “Eu já não sentia que seria algo terrível revelar que meu pai era gay como 20 anos atrás”. Apesar dessa flexibilização nos valores da sociedade, porém, “Fun Home” foi alvo de verdadeiras cruzadas pela moral e pelos bons costumes por parte de conservadores que não se conformavam com a presença do livro nas prateleiras. No ano passado, o livro foi retirado da biblioteca de uma escola em Nova Jersey. A família também não ficou lá muito à vontade com a ideia de ser exposta a estranhos, embora tenha sido avisada sobre o projeto antes mesmo de o livro começar a ser escrito. “Descobri que existe algo inerentemente hostil em relação a ter outra pessoa escrevendo sobre a sua vida. Não importa o quão bem-intencionada esteja”.
O desconforto vem das ambiguidades em torno da morte de Bruce Allen. “Acredito que isso seja parte do brilhantismo do meu pai, o fato de sua morte ser tão indeterminada”, disse a autora em uma entrevista ao jornal britânico “The Guardian”. “Gosto da ideia de que ele conseguiu. De que foi seu último arquejo. Quero acreditar que ele partiu triunfalmente”.
Seja por suicídio ou por acidente, o pai de Alison morreu no começo dos anos 1980, quando a Aids ainda era conhecida como “câncer gay” por ter se espalhado rápida e mortalmente na comunidade homossexual americana. “Quando tento imaginar o que seria da vida do meu pai se não tivesse morrido em 1980, não chego muito longe”, escreve Alison em suas memórias, tratando os preconceitos da época como “uma narrativa de injustiça, vergonha sexual e medo de uma vida considerada descartável”.
Uma das dificuldades de se adaptar “Fun Home” para o cinema talvez esteja nas muitas idas e vindas no tempo por que passa o musical. Outra situação que deixa os fãs da peça arrepiados é como levar a simplicidade de um palco quase vazio para a tela sem recorrer a cenários cheios de detalhes e objetos de cena. Do talento de Jake Gylleenhaal, porém, ninguém duvida. Uma das maiores fãs do musical, a colunista Rachel Leishman, do site de entretenimento “The Mary Sue”, faz todas as ressalvas possíveis antes de admitir, no final de um artigo, que está “muito empolgada pelo que poderá vir a ser um filme baseado em ‘Fun Home’, espero que seja algo que faça justiça à beleza do musical”.
Pois é, o ator, que completa 40 anos em dezembro, tem um desafio e tanto pela frente. Segundo a imprensa americana, ele também produzirá o longa, que ainda não tem elenco definido e nem data para estrear. Além de “Brokeback Mountain”, o astro de filmes como “O Dia Depois de Amanhã” (2004), “Príncipe da Pérsia” (2010) e “Homem Aranha: Longe de Casa” (2019), entre muitíssimos outros, deu vida ao crítico de arte mezzo gay Morf Vandewalt no filme de terror satírico da Netflix “Velvet Buzzsaw”, lançado no ano passado, ao lado de Rene Russo e Toni Collette.
Sobre a questão de interpretar personagens homossexuais, o ator comentou numa longa entrevista para a revista “GQ”, em junho do ano passado, que o cowboy de “Brokeback Mountain” foi uma espécie de divisor de águas em sua vida. “O filme abriu inúmeras portas. Foi uma loucura e também foi surpreendente. Ele definiu a minha carreira de diversas maneiras”, disse, acrescentando que Heath Ledger odiava que fizessem piadinhas homofóbicas sobre seus papéis: “Ele jamais faria uma brincadeira sobre isso. Se alguém pensasse em fazer graça sobre a história ou o que fosse, ele ficava sério, tipo ‘Não. O filme trata de amor’”.
Indicado ao Oscar, Gyllenhaal revelou à revista o motivo pelo qual acredita que ele e Ledger, dois homens heterossexuais, foram convidados para os papéis de gays. “Acho que fomos chamados por conta das nossas ‘essências’ sem sequer sabermos o que elas eram, e isso não tem a ver com a nossa sexualidade. Éramos dois caras hétero, mas que eram, eram… Ang Lee viu algo”, disse. “Então, quando o filme teve a repercussão que teve… Não creio que a gente tenha entendido o que Ang viu em nós, ficamos cegos à intensidade e ao impacto causado pelo filme. Acho que nunca tivemos a menor noção desse impacto. Fazer um filme que apenas funcione já é um milagre. Quando vai além disso, é uma impossibilidade. E não tinha nada a ver conosco”.
Vejamos o que Jake Gyllenhaal consegue fazer com um papel tão complexo e que, talvez, tenha menos ainda a ver com ele. Aguardemos.
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O livro foi traduzido para o português e está à venda no Brasil. Aqui se chama “Fun Home: Uma Tragicomédia em Família” e pode ser encomendado pelos sites Amazon (amazon.com, R$ 45), Americanas (americanas.com.br, R$ 47,91), Submarino (submarino.com.br, R$ 47,91) e ShopFácil (shopfacil.com.br, R$ 36,96), entre outros.
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