Uma autoficção ou uma falsa biografia. É mais ou menos assim que o ator, diretor, professor de interpretação, preparador de elenco, tarólogo e dramaturgo Daniel Chagas define seu romance de estreia, ‘Entre’ ( Editora Viseu, 108 páginas, R$ 36,90, e-book R$ 9,90 ). Nele, um professor de literatura perde a cabeça por uma jovem aluna, que o inspira a escrever seu primeiro romance. Casado, ele se vê em conflito entre a mulher e sua musa inspiradora, com a qual ele cria uma relação de co-dependência, comprometendo sua sanidade e a obra. Falar sobre sentimentos, ainda mais nos dias hoje, é sempre uma boa pedida. “É um livro de confissões apaixonadas, uma escrita em fluxo feroz, tanto que não tem parágrafos ou capítulos – em um momento, nem pontuação tem. É uma provocação sensorial sobre nossos desejos e confissões sobre eles. As personagens são descritas através do olhar confuso do protagonista. Quantas vezes nós criamos versões da vida diante do que sentimos e nem sempre é ‘a verdade’ dos fatos? O quanto damos vazão aos nossos desejos? Qual o limite da nossa perversão? Do nosso amor? Espero que o livro provoque quem o lê. Que deixe colunas eretas e bundas inquietas nas poltronas e camas”, provoca Daniel.
Esse ‘cutuque’ literário vem também sob a visão de um homem hétero, branco e de classe média, educado dentro de todos os padrões do machismo estrutural da sociedade dos anos 80/90, ele admite. Dentro desse contexto, cada vez mais discutido atualmente, o autor questiona o novo lugar do homem. “É complexo, pois a segurança do padrão é confortável, mas é tão óbvio e urgente a necessidade de ampliar nosso senso de comunidade e aceitação. Sair do conforto da estrutura demanda esforço e reconhecimento de que estávamos equivocados em muitas ações e pensamentos”.
O romance fala sobre um homem que perde o chão ao se apaixonar por outra mulher. Enquanto homem hétero, perfil que vem sendo bastante ‘bombardeado’ ultimamente, como você se vê hoje? “Primeiro de tudo eu acho esse ‘bombardeio’ um caminho essencial para o mundo! Sinto que quando falamos de paixão há um sentido universal que nos atravessa à todes. O como lidamos com esse sentimento, socialmente falando, é que expõe as diferenças. O que nos dizemos e o que confessamos para o mundo. Hoje me vejo com muito mais consciência do meu lugar social, aprendo, pergunto, questiono e erro. É um processo de reaprendizagem. Nós homens, precisamos urgentemente reconhecer a estrutura facilitadora que temos. Isso tão nítido que me causa vergonha ver alguns de nós replicando falas e atitudes misóginas e preconceituosas”, confessa Daniel. “Ter a consciência de que se é um homem, branco e sudestino de classe média alta não me faz melhor ou pior que ninguém, no sentido humano, mas é óbvio que diante de mim há uma centena de privilégios. Reconhecer isso é saber do meu ponto de partida na vida. A ignorância de quem não quer lidar com isso está na covardia de se ver vulnerável. Daí criam uma ideia frágil de competição e desmonte da imagem do homem hétero e branco. Ninguém quer ‘tirar’ nossos privilégios! Nós que temos que entender isso para agir diferente por um mundo mais igualitário. Isso é humanidade! É tão complexo, pois falando isso aqui com vocês, me sinto um pouco farsante, já que ainda vivo sob essas estruturas e elas não sairão de mim, até porque parte delas são quem sou, falo do sentido social, externo a mim e também de questões que ainda não elaborei”.
E conclui: “Fui educado dentro de todos os padrões do machismo estrutural da sociedade, mas o teatro, o candomblé, as relações que tive e a convivência, digamos ‘porosa’, com as pessoas e as reflexões que questionam e extrapolam essa estrutura, me fizeram aprender e transformar muitos comportamentos e crenças. Transformação necessária para qualquer um que tenha nascido sob estas normas e regras”.
Daniel Chagas também finaliza dois curtas como roteirista e diretor, mergulha na pesquisa teatral para um espetáculo inspirado na obra ‘Revolução dos Bichos’ de George Orwell, e escreve a peça ‘Mater’, que terá no elenco Sueli Guerra e Rafaela Amado. E além de tudo é tarólogo: “Acredito que minha espiritualidade afeta meu processo humano e como cidadão. Sou candomblecista e, como tal, aprendo diariamente sobre uma cultura religiosa que se mantém na prática. O ensinamento é no preparo dos alimentos, no trato com os orixás e as demais entidades, nas conversas, nos itãs que os mais velhos nos contam. Itã é como chamamos as histórias da nossa mitologia. É um ensinamento de vida muito profundo”. E avalia: “E isso afeta meu processo de criação. Se mudo, meu trabalho também muda. Nós, trabalhadores da arte, temos o privilégio de poder transmutar nossa realização de obra para obra. A arte tem como um dos princípios, revelar ao ser humano traços dele mesmo, como disse Hamlet ao elenco de sua peça: “Pois tudo que é forçado deturpa o intuito da representação, cuja finalidade, em sua origem e agora, era, e é, exibir um espelho à natureza; mostrar à virtude sua própria expressão; ao ridículo sua própria imagem e a cada época e geração sua forma e efígie.” Acredito muito nas palavras de William Shakespeare, fui ensinado, desde a adolescência a ver a produção artística desta forma”.
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