*Por Jeff Lessa
Há quase 20 anos, a escritora e jornalista Claudia Werneck – mãe de Tatá Werneck – batalha para socializar a comunicação com as pessoas com deficiência física. Jornalista formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 1980, ela fundou a ONG “Escola de Gente – Comunicação em Inclusão” há 17 anos, com o objetivo de formar jovens aptos a defenderem uma sociedade inclusiva. Uma sociedade com mais empatia, enfim. Pois a instituição acaba de dar um grande passo no sentido de concretizar esse ideal com o lançamento do aplicativo Vem CA, plataforma digital gratuita de alcance nacional e totalmente acessível. (CA se refere à Cultura Acessível)
“Com esse aplicativo, pessoas com ou sem deficiência poderão se informar previamente sobre as características de acessibilidade do lugar aonde pretendem ir”, conta Claudia. “Se você anda de cadeira de rodas e quer levar seu neto ao circo, por exemplo. Basta consultar o app para saber se o local tem rampas, se o banheiro é adaptado, se há lugar para acomodar a cadeira etc. A mesma coisa com restaurantes, teatros, cinemas, museus, festivais gastronômicos etc”.
O Vem CA consegue cadastrar até 12 tipos de atividades culturais e tem o mesmo número de recursos de acessibilidade disponíveis para busca: assento acessível, áudio-descrição, guia acessível, banheiro acessível, elevador/rampa, gratuidade, legenda, Libras, Libras tátil, linguagem simples, piso tátil, publicações acessíveis e vista tátil.
“Gratuidade”? “Sim. A pobreza que impede alguém de frequentar lugares que oferecem cultura também é uma deficiência. Eu e você não passamos por isso, mas como uma pessoa que nunca foi a um teatro, nunca assistiu a um filme por falta de dinheiro lida com essa negação cotidiana? Como essa privação afeta aquele indivíduo?”, pergunta-se Claudia, lembrando que não existe no mundo uma plataforma que preste esse tipo de serviço gratuitamente, tanto para inserir os dados como para consultá-los. “O usuário pode criar as combinações que necessitar. Por exemplo, se precisa de rampas e narração em Libras, pode cruzar esses dados e ter a informação mais específica para o seu caso”.
E já que o assunto é acessibilidade, era essencial que o próprio app não fosse um bicho de sete cabeças. Não é. Para começar, pode ser baixado em quase todos os smartphones existentes hoje, dos mais simples aos mais sofisticados: adapta-se a 9.985 modelos. Vem com mecanismo de leitura de funções para os cegos, conteúdo transcrito em Libras, definição de cores de contraste para não confundir daltônicos ou quem tem baixa visão, navegabilidade simplificada e botões maiores para poder ser manuseado com uma única mão, descrição de imagens, ícones visuais de busca para facilitar a compreensão de quem tem deficiência intelectual e psicossocial ou dificuldades para processar informações, e uso dos componentes-padrão dos sistemas operacionais dos celulares, a fim de garantir a familiaridade com os mecanismos. Outra característica é o consumo de dados ser muito baixo.
Claudia ressalta que, para o processo funcionar bem, vai ser necessário mudar a dinâmica da divulgação vigente atualmente. “Queremos implantar no país a cultura da acessibilidade. Estamos conectando quem precisa diretamente a quem oferece. Estamos devolvendo os direitos dessas pessoas, não se trata de favor”, avalia. “Mas os produtores, diretores, assessores de imprensa vão ter de se acostumar a ‘alimentar’ o aplicativo. Vão ter de entrar lá e informar tudo que as instituições fizerem em prol da acessibilidade. Acrescentou uma rampa? Registra. Botou cardápios em Braile? Anuncia no app. Isso tem de se tornar um pensamento endêmico, deixar de ser eventual”.
Além de valorizar a acessibilidade física (“O app prestigia quem já pratica e estimula novas iniciativas nesse sentido”, acredita Claudia), o mecanismo acaba proporcionando liberdade de pensamento. “Cultura é fundamental para o desenvolvimento de uma visão mais crítica do mundo. Com isso, você ganha capacidade de enxergar a vida com seus próprios olhos e deixa de depender da opinião dos outros para tudo”, dispara a escritora, especializada em Comunicação e Saúde pela Fundação Oswaldo Cruz e única autora brasileira com obras recomendadas ao mesmo tempo por Unesco e Unicef, em 2000.
Claudia Werneck conta que ainda se lembra de quando teve o insight que a levou a militar efetivamente pela causa da inclusão. “Em 1991, eu era chefe de reportagem na revista ‘Pais & Filhos’. Lidar com aqueles assuntos mexeu comigo e mudou totalmente a minha percepção do jornalismo. Sempre batalhei pela inclusão, mas precisava agir”, conta. “A Escola de Gente – Comunicação em Inclusão nasceu em 2002, 2003. De lá para cá obtivemos mais de 60 reconhecimentos nacionais e internacionais. Também recebemos o Prêmio Direitos Humanos, concedido pela ONU, e a Ordem do Mérito Cultural, da presidência da República”.
A mãe de Tatá Werneck conta que fundou a Escola de Gente no ano em que a filha hoje famosa começou a estudar na UniRio. “Ela se inspirou e criou um grupo de teatro para tratar de acessibilidade com humor. Os integrantes faziam teatro acessível. Foram os primeiros”, revela, orgulhosa, a ativista.
A (ótima) iniciativa de Tatá foi materializada no grupo Inclusos e os Sisos, que já foi visto por mais de 100 mil pessoas. Desde 2003, e em todas as suas apresentações, a trupe trata de inclusão. Até hoje, são os únicos no mundo a adotar essa prática. Através do projeto Teatro Acessível. Arte, Prazer e Direito, a ONG leva peças gratuitas e de fácil compreensão a todo o país. Assim, garante a participação de pessoas com deficiência, mobilidade reduzida e baixo letramento na vida cultural de suas cidades.
Criado e desenvolvido pelo coordenador da Escola de Gente, Pedro Prata, o aplicativo Vem CA tornou-se realidade graças às leis de incentivo à cultura do Ministério da Cidadania e da Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro, com patrocínio de Itaú, MRS Logística, Oi, White Martins e Wilson Sons. O patrocínio contou com apoio da Associação Nacional do Ministério Público de Contas, da Associação Nacional dos Procuradores da República, Ashoka Empreendedores Sociais, Baptista Luz Advogados, Fundação Pedro Jorge e Oi Futuro.
O app será lançado no Rio de Janeiro em 5 de outubro, às 14h, no Oi Futuro Flamengo. Estão programadas uma visita guiada com acessibilidade, uma roda de conversa sobre o aplicativo e a exibição de filmes acessíveis. O evento será gratuito e aberto ao público.
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