Zélia Duncan estreia show e diz: ‘Frio na barriga é parte da matéria-prima. O dia que ficar normal demais, eu paro’


Com mais de quatro décadas de carreira, a cantora e compositora lança novo show, batizado “Sem tirar os olhos do mundo”, neste final de semana, em São Paulo. Nesta entrevista, Zélia abre o coração sobre a dificuldade do artista viver de música no Brasil, a complexa questão dos direitos autorais no streaming, o monopólio do sertanejo, além de elogiar Anitta. Voz potente, ela diz sobre as dores da realidade do Brasil: “O fundamentalismo religioso é muito complicado. Porque é muito aberto ao fascismo, à violência de todas as formas. Isso já nos deu desgostos feios e ainda nos ameaça. E ainda tem o racismo, que é a nossa pior doença”

Zélia Duncan estreia Sem tirar os olhos do mundo

*Por Rafah Moura

Aos 42 anos de carreira, Zélia Duncan sempre prometeu e entregou tudo. Sejam em seus impecáveis shows, ou como uma letrista fantástica ou ainda como uma roteirista que nos arranca o fôlego, como no Prêmio da Música Brasileira. Afinal, como uma intensa escorpiana, o fresco e a novidade fazem parte de sua jornada. “O frescor no meu caso, se arriscar um tanto, se inquietar outro tanto. Não querer entregar sempre o mesmo pacote! E até hoje, eu sinto o frisson da estreia, aquele frio na barriga, que é parte da matéria-prima. O dia que ficar normal demais, eu paro!”, ressalta a artista.

E um show novinho, batizado “Sem tirar os olhos do mundo“, rola neste final de semana, em São Paulo, com repertório que nasceu e foi gravado em isolamento, em meio a receios e descobertas, que se tornou o álbum ‘PELESPÍRITO’. “Como se naqueles momentos, estivéssemos nos retroalimentando, arrancando de nós mesmos as perguntas e possíveis respostas. Então juntei essas duas palavras, por pura necessidade. Cheguei a fazer apresentações com esse nome e num formato acústico, quase minimalista, para traduzir a maneira como foi feito”. Zélia, que ama os pequenos prazeres, revela que momentos simples a alimentam. “Ler um texto inspirador, cantar junto com amigos, viajar, correr, compor, namorar. Isso, para mim, é aproveitar o tempo. E, claro, o palco é onde mais amo estar, quando estou fora da intimidade”, revela. E, dia 2 de agosto, ela estará no Teatro Riachuelo, no Rio de Janeiro.

Perguntamos para a cantora como é viver de música no Brasil, pois cada vez mais vimos a ascensão de novos artistas. “Acho que você sabe a resposta! É MUITO difícil. A música tem esse clima de mágica para o senso comum. Você se conecta e começa a ouvir… Somos mal pagos e desconsiderados por quem devia valorizar nosso trabalho, inclusive porque vivem dele”, desabafa. E continuando a olhar para o cenário musical, Zélia comenta sobre o jabá para uma música tocar nas rádios. “Música no rádio é uma coisa complexa, com algumas exceções. Sempre existe a moeda de troca, não há preocupação em retratar o cenário musical”.

Zélia Duncan

Zélia Duncan estreia o show “Sem tirar os olhos do mundo” (Foto: Roberto Setton)

Para valorizar esse amor as artes e agradecer ao público, Zélia Duncan convocou sua banda e trouxe as canções para outros possíveis contextos e descobertas. E foi nesse foco que, ao receber o vinil comemorativo de ‘Sortimento’, ela diz que começou a “entender as pontes entre um e outro. O mais recente e o que comemora duas décadas. Então, este show começou a se mostrar pra mim. Minha banda, revestindo as músicas com outros gestos musicais, que ainda não ouvimos, dois backings que sempre quis e só agora estarão presentes e uma ou outra música de discos diferentes. Um show sortido e cheio de unidade ao mesmo tempo. As músicas de hoje, amparadas por aquelas que nasceram bem antes. Vamos fazê-las conversar. E todas ali querem me revelar”, explica.

Zélia revela que a ideia é seguir comemorando as quatro décadas de carreira, juntando ‘Pelespírito’ com ‘Sortimento’. “Nesses shows vou trazer ainda uma pitada de Itamar Assunção e outros autores que gravei, festejar o projeto “Relicário”, do Sesc Digital, que acaba de lançar uma apresentação minha de 1997, um documento que traz ainda uma entrevista comigo e o saudoso Zuza Homem de Mello. O livro que lancei, “Benditas Coisas Que Eu Não Sei“, que contém conversas e memórias musicais”, conta.

Canções como ‘Onde É que Isso Vai Dar’, ‘Vou Gritar Seu Nome’ e ‘Pelespírito’ vão desaguar nas veteranas ‘Flores’, ‘Me Revelar’ e ‘Por Que Que Eu Não Pensei Nisso Antes?’, de Itamar Assumpção (1949 – 2003). “Dificilmente consigo subir ao palco sem ele. Já gravei em torno de 25 músicas desse meu ídolo”, revela.

Segundo a pesquisa Media Outlook da PwC, o mercado global de streaming de música digital deverá movimentar o montante de US$ 36,8 bilhões em 2026, o que representa que a revolução gerada pelas novas formas de consumo de música já provoca importantes consequências na indústria do entretenimento e comunicação. E, apesar desses boom, a questão do pagamento ao músico com relação às plataformas na internet ainda é muito complexa.

As gravadoras nunca ganharam tanto, porque aproveitam o fato de que não existe uma legislação forte, muito menos consciência das pessoas. Há muitos anos, ouvi de um sujeito – que hoje dá cursos para jovens artistas na rede – que ‘artista bom era artista morto’. Hoje nem precisamos morrer para que se apropriem do nosso trabalho. O streaming dá conta! Veja como até o Congresso tem dificuldade em nos proteger – Zélia Duncan

Zélia conta que é uma eterna pesquisadora da música brasileira e acredita que tem muita gente fazendo excelentes músicas. “A cena de Pernambuco traz nomes com nomes como Almério, Martins, Juliano Holanda e tantos outros. Catto, Dani Black, Vanessa Moreno, Júlia Vargas, Julia Mestre, Chico Chico, Dora Morelenbaum, Tim Bernardes, Zé Ibarra são novos nomes que admiro muito”. E ainda relembra grandes nomes da nossa música que nos deixaram nos últimos anos como Rita Lee, Erasmo Carlos, Gal Costa, Elza Soares e tantos outros. “É triste não termos mais a presença física desses ídolos, mas faz parte da vida, seguimos com suas obras nos ensinando e fazendo companhia para sempre”.

Anitta se tornou uma das brasileiras mais influentes do mundo, Nº 1 no Spotify global. Zélia parabeniza essa garra e reconhecimento internacional da artista. “Anitta, a meu ver, é genuína no que faz – e faz muito bem. Defende os artistas do funk carioca, é de onde ela veio, não está enganando ninguém, tem muito valor”. E sobre a mega ascensão do sertanejo comenta: “Os sertanejos são mais confusos pra mim, musicalmente. E esse monopólio todo, eu não acho saudável para a música brasileira, mas seguimos”.

No fim dessa conversa, de peito aberto, perguntamos para a cantora como ela lida com as redes sociais, afinal seu engajamento é de extrema importância. E comenta sobre as dores da realidade do Brasil: “O fundamentalismo religioso é muito complicado. Porque é muito aberto ao fascismo, à violência de todas as formas. Isso já nos deu desgostos feios e ainda nos ameaça. E ainda tem o racismo, que é a nossa pior doença”.