Show de 50 anos de carreira, turnê pela Europa, um musical e medalha em seu nome. As ‘emoções reais’ de Alcione


O Theatro Municipal abriu as portas para celebrar a popularidade e a força de Alcione. A Marrom escolheu o templo máximo da cultura carioca, na Cinelândia, para gravar um projeto audiovisual que marca as bodas de ouro de uma careira vitoriosa. Além deste, outros eventos comemorativos marcarão a importante efeméride, que também consta de uma turnê pelo Brasil e pelo exterior. Cantando músicas que transitam desde o samba que a caracteriza à música popular francesa, ao complexo tango argentino e à Estação Primeira de Mangueira, a maranhense contou com a aclamação popular em canções como “A Loba”, além de ter a presença, na plateia, do suposto “Garoto Maroto” que batiza a canção de sucesso

*Por Vítor Antunes

“Gratidão” foi a palavra-chave do show de Alcione, que celebra os seus cinquenta anos de carreira. Com o Theatro Municipal lotado – somando plateia e todos os balcões –, a Marrom cantou seus maiores sucessos tendo um coro de mais de 2.000 vozes de apaixonados. A apresentação registrada no principal palco carioca será, mais tarde, transformada num produto audiovisual e é apenas uma parte da série comemorativa ao cinquentenário de trajetória profissional da cantora. Além deste projeto, haverá shows pelo Brasil e pelo exterior. A turnê terá um roteiro especial em terras portuguesas passando em cidades como Lisboa, Porto, Águeda e Funchal, além de uma apresentação especialíssima em Londres. Embora esteja com previsão de lançamento para breve, incluídos aí a plataforma e o formato, o show comemorativo montado no Municipal fará companhia a um outro projeto audiovisual, já lançado: “O Samba é Primo do Jazz“, mini biografia que apresenta a trajetória de Alcione desde sua saída de São Luís ao tempo presente.

Alcione; a diva no Municipal pelas lentes de Vinícius Mochizuki

Também tendo como objetivo celebrar a biografia da cantora de “Estranha Loucura“, Miguel Falabella dirigirá o espetáculo “Marrom, o Musical“, escrito por Jô Santana, e com estreia prevista para agosto, em São Paulo. Forma de privilegiar o estado natal da homenageada, a seleção de artistas começou, justamente, no Maranhão.

Além de todas essas homenagens, o Governo do Estado do Rio de Janeiro criou uma comenda exclusiva para a cantora: A Medalha Alcione, que visa conferir o grau máximo do mérito cultural do Estado e será entregue à personalidades da Cultura no dia do aniversário da artista.

O espetáculo no Theatro Municipal marcou a gravação do novo DVD de Alcione (Foto: Vinícius Mochizuki)

Profissão: Cantora. Simplesmente Marrom

Na apresentação realizada no Municipal, a fim de aderir fortemente a imagem da musicista à sua História, fotos de álbuns antigos, apresentação de músicas regionais maranhenses, canções de seu pai – João Carlos Nazareth (1911-1986) – e a Estação Primeira de Mangueira compuseram o mosaico de uma carreira prolífica e versátil que a cantora retribuiu com gratidão ao afeto recebido por todos estes anos: “Agradeço a Deus. (…) É uma honra para mim em meus 50 anos de carreira estar junto (de vocês). Muito, muito bom. Obrigado pelo carinho”, disse, enquanto era aplaudida de pé e em cena aberta. O line up foi composto por sucessos que, por serem inúmeros, não poderiam ser executados na íntegra, havendo a necessidade de se lançar mão de um pot-pourri.

Alguns nomes importantes da cena artística brasileira prestigiaram a cantora. Amigos como Zeca Pagodinho e Maria Bethânia estiveram presentes. Esta última, inclusive, declamou, na abertura do show, um poema em homenagem ao Maranhão, estado natal da Marrom. Os diálogos com o estado nordestino deram-se também quando a irmã de Caetano Veloso, na locução inicial, exaltou o poeta maranhense Gonçalves Dias (1823-1864). A amizade entre as cantoras é longeva e já contou com gravações e colaborações de ambas as partes. Bethânia esteve no álbum da cantora de São Luís, “Ao Vivo 2”, de 2003, onde ambas fizeram um duo numa canção de Dolores Duran (1930-1959) chamada “Ternura Antiga“, sendo esta a única música gravada em estúdio no projeto cujo nome já marca o seu gênero. Alcione, por sua vez, participou do disco que celebrava os 25 anos de carreira de Bethânia. Ambas cantaram “Awo/Iansã”, uma melodia em homenagem ao orixá regente da filha de Dona Canô (1907-2012).

Maria Bethânia prestigiou a amiga, Alcione e narrou o poema inicial do show e trecho da Canção do Exílio, poema de Gonçalves Dias (Foto: AG News/Beatriz Ramy)

No show, Alcione cantou seus sucessos, como “Meu Ébano”, “A Loba”, “Rio Antigo” e “Gostoso Veneno”, e surpreendeu ao cantar o tango, “Nostalgias”, dos argentinos Cadícamo (1900-1999) e Cobián (1896-1953), sob a forma de pasodoble. De igual surpresa, a homenagem ao cantor franco-armênio Charles Aznavour (1924-2018). Outras sentidas deferências foram à Clara Nunes (1942-1983), amiga da maranhense, e Emílio Santiago (1946-2013), também parceiro de jornada nos palcos da vida.

Outros artistas dos mais variados estilos estiveram presentes no show. Uma delas foi a drag-queen Isabelita dos Patins, pois que o público LGBTQIA+ se vê muito representado em Alcione. É o que conta-nos o ator Luís Lobianco, que, além de amigo da Marrom, era um dos organizadores do show “Buraco da Lacraia”, que acontecia no Centro do Rio: “Alcione faz parte da nossa vida desde sempre. Eu estive em várias plateias de seus shows. Tive o prazer de recebê-la no Buraco da Lacraia, onde ela, literalmente, comprou o barulho: Tomou cerveja em copo de plástico, sentou em cadeira de bar… Presenciou drags fazendo lipsync em sua homenagem. Ela cantou lá conosco, inclusive. Aqui (no Centro do Rio) deve ter alguém agora dublando-a em algum bar. A cantora tem muita consciência de que tem um público LGBTQIA+ muito cativo.  Ela é essa diva que abraça tudo: Do Theatro Municipal ao jazz Internacional, passando pelo “Buraco da Lacraia”. Pra mim, essa celebração (dos 50 Anos) deveria ser igual ao jubileu da Rainha Elizabeth: Quatro dias de festa”, compara.

Luís Lobianco ressaltou a representatividade de Alcione junto à comunidade LGBTQIA+ (Foto: AG News/Beatriz Ramy)

Certa de sua representação junto à população afro,  o show contou com a apresentação do Ile Axé Obaluaiê d’Jagun, casa de candomblé liderada por Pai Celinho de Omulu. Em poucas ocasiões o Theatro Municipal abrigou apresentações, quer religiosas, quer musicais, sob a ótica afro. Além dos ogãs e dos cantos de candomblé, o show contou com o balé da Companhia Cenarte Dimensões e com a Orquestra Sinfônica Maré do Amanhã, naquela que talvez seja a primeira presença deste público no afamado teatro fundado em 1909. Outro segmento a estar presente foi a Estação Primeira de Mangueira, que contou com a apresentação do casal de Mestre-Sala e Porta-Bandeira da escola, Matheus Olivério e Débora Almeida.

Em tratando-se das escolas de samba, Vilma Nascimento, porta-bandeira da Portela, diz ser amiga da cantora desde antes do sucesso do primeiro LP, lançado em 1975: “Fui a shows dela no início de carreira, ainda na Praça Tiradentes, no João Caetano, e fiquei gamada por ela desde então. Eu sou sua fã número um”. Outro nome profundamente vinculado à Marrom, Chiquinho da Mangueira, ex-presidente da verde e rosa, ressaltou que a cantora, apaixonada pela escola, apoiou-a em diversas ocasiões e não apenas com seu amor, mas pondo a mão na massa: “É a pessoa que mais ajudou a  Mangueira em sua história. Junto a mim fundamos a Mangueira do Amanhã (escola de samba mirim braço da agremiação principal). Além de ser muito envolvida nas causas sociais. Temos uma história muito forte”, ressalta. Dentro da história da Música Popular Brasileira costuma ser atribuída a Chiquinho a inspiração que deu origem à canção “Garoto Maroto”, imortal sucesso lançado em 1986. Perguntado sobre isso, o rapaz tangenciou: “Aí eu não sei. Isso tem que ser perguntado a ela”, desconversa.

Outra a celebrar a data é a igualmente cantora Gaby Amarantos. Esta, por sua vez, exaltou as raízes que as une. Amarantos é paraense, Alcione, do Maranhão. E ambas são mulheres, negras e de regiões que são colocadas fora do cenário cultural brasileiro: “Eu fico toda arrepiada por que a Marrom é a primeira mulher preta poderosa que eu vi quando era criança (emociona-se). Meu pai tinha todos os LP’s dela e eu ficava imitando-a cantar. Alcione é a minha maior inspiração. A maior diva da minha vida. E considerando que o Maranhão fica do lado do Pará, eu sei o quanto era difícil e o que ela deve ter enfrentado para chegar aqui e conquistar este espaço, já que temos uma luta muito parecida. Ela é pra mim uma das artistas mais importantes e que bom que agora está havendo esse reconhecimento dela enquanto mulher preta. Parece que as pessoas não faziam esta ligação. O fato de ela existir já é uma militância. Ser linda, poderosa, lotando os lugares e sendo essa cantora relevante que é, ela já está fazendo muito por nós. Estar neste lugar já é um posicionamento”, afirma, emocionada.

Gaby Amarantos emocionou-se ao lembrar da infância quando tinha Alcione por referência (Foto: AGNews/Beatriz Damy)

Danilo Mesquita, sucesso em “Além da Ilusão”, novela das 18h, associa a sua história à da cantante, pois que ambos têm a mesma origem: “Ela é nordestina e brasileira. Uma artista que transitou por diversos lugares na música. É uma força natural.  A sua história é contada por que dialoga com as suas origens. O artista fala sempre de onde ele vem. É uma artista que o Brasil deveria aplaudir em cena aberta, enquanto ela andava na rua”, elogia. Danilo fez, também, a deferência à namorada, a atriz Ayomi Domênica. De uma família de músicos, Domênica, que é filha do rapper Mano Brown, e fã inconteste de Alcione e fez questão de ir prestigiá-la.

Outra a destacar a importância da musicista que traz a sua etnia como identidade é a atriz Juliana Alves: “É muito simbólico. (Este show) exalta a vitória de uma mulher nordestina que realiza seus sonhos e inspira mulheres a vivenciarem uma carreira vitoriosa e em canções que nos embalam”, relata. Fortemente ligada ao carnaval, pois que já fora Rainha da Bateria da Unidos da Tijuca, Juliana prossegue dizendo, que, na qualidade de “sambista não tenho como resistir. Já tive um encontro bonito com Alcione durante as gravações de “Caminho dos Índias”, onde almoçamos juntas. A cantora é forte e autêntica, tanto que está figurando neste espaço (Theatro Municipal) que nem sempre prestigiou o artista preto”. Em 2022, Juliana desfilou no Acadêmicos do Salgueiro, numa alegoria que homenageava, justamente, a primeira bailarina negra do teatro Municipal, Mercedes Batista (1921-2014).

Juliana Alves ressaltou a representatividade de Alcione junto à negritude e às mulheres (Foto: AG News/Beatriz Ramy)

Guilherme Weber, ator curitibano, afirma que Alcione “É o exemplo de um Brasil vitorioso, de um País possível e melhor. Uma mulher que poderia ser a soma de todas as minorias e alcançou o triunfo é a prova de que o Brasil ama a si mesmo e quando ele não consegue realizar esse amor, é por conta de agentes do mal não permitiram que esse amor acontecesse. Ela é a prova de que o Brasil ama o Brasil, por que ela nos revela o País. Muito do que aprendi de música vem do som de suas músicas, das de Bethânia, das de Villa Lobos (1887-1959). Estes talvez sejam um dos pilares que me fizeram amar o Brasil”.

Dona de uma carreira versátil, intensa e que, como ninguém, representa a alma feminina através de seu canto. Poema encantado de amor que traz o Maranhão na raiz, Alcione tem a vida na voz. Em todos os matizes, coloraturas e profundidades do sentimento. No álbum “Emoções Reais”, de 1990, a cantora convida a “massa a ser feliz ano menos uma vez”. Em 50 anos de carreira, com certeza, o Brasil foi (é) mais feliz por mais de um instante. E todos eles, somados, tem o valor da eternidade.

50 Anos de Carreira. Alcione, o palco e suas emoções reais (Foto: AG News/Beatriz Ramy)