“O que seria para a quaresma após a Quarta-feira de Cinzas, é, entretanto, quarentena de cinzas”, diz Luana Carvalho


Pouco mais de um ano depois da morte de Beth Carvalho, Luana Carvalho lança “Baile de máscara”, disco-tributo à mãe gravado remotamente por conta do coronavírus. “Era a minha referência de família. Sempre fomos eu e ela, ela e eu, a vida inteira. Não vou abrir mão de honrar tudo que ela representa, e de honrar, também, o amor dos fãs e esse lugar de importância e gratidão que ela teve para esses afilhados todos. A gente não tem mais outra cantora de samba que faça o que minha mãe fez”, pontua

Foto: Ana Alexandrino

*Por Simone Gondim

Filha única, a cantora e compositora Luana Carvalho cresceu acostumada a compartilhar o afeto da mãe com muita gente. Afinal, Beth Carvalho (1946-2019) era conhecida como Madrinha do Samba – entre suas descobertas, estão Zeca Pagodinho, o grupo Fundo de Quintal, Arlindo Cruz, Jorge Aragão e Almir Guineto, fora o resgate de estrelas como Cartola e Nelson Cavaquinho. Mas, desde abril de 2019, o amor divide espaço com a saudade. Beth saiu de cena aos 72 anos, deixando órfãos, além de Luana, uma legião de fãs e inúmeros sambistas.

Para acalmar o coração e dividir um pouco o luto, Luana escolheu a música: lançou o disco “Baile de máscara”, no qual homenageia a mãe cantando seis músicas sobre o carnaval, gravadas por Beth ao longo de mais de 50 anos de carreira. “Mais do que minha mãe, é a mãe de um país. Tem o lado da filha, que talvez preferisse ficar em casa quietinha, e tem a responsabilidade mesmo, que é parte da minha história desde que nasci”, diz Luana. “É claro que não vou abrir mão de honrar tudo que ela representa, e de honrar, também, o amor dos fãs e esse lugar de importância e gratidão que ela tem para esses afilhados todos. Mais do que cantar, ela tinha uma representatividade muito grande. A gente não tem mais outra cantora de samba que faça o que minha mãe fez”, garante.

(Foto: Reprodução Instagram)

Segundo Luana, foram precisos 12 meses sem a presença física de Beth para que ela sentisse os pés tocando o chão novamente. “Minha mãe era minha referência de família. Sempre fomos eu e ela, ela e eu, a vida inteira. Claro que tem a Mia (filha de Luana), uma sequência, mas esse período foi muito estranho. Um ano meio fora, em que você não se dá conta dessa ausência”, revela. “Tinha, claro, um desejo de fazer alguma coisa para minha mãe, mas a princípio não seria um disco. Imaginei montar uma playlist com as músicas que eu mais gostava dela, porque era uma coisa que eu não precisaria estar atuante no dia da morte, que era um momento em que achei que fosse querer ficar recolhida, mais do que já estamos por causa da quarentena”, acrescenta.

“Minha mãe e meu pai morreram num curto espaço dos últimos anos. Nas duas ocasiões me veio uma frase na cabeça: viver, morrer, seguir vivendo, tudo é apenas uma maneira de entrar no baile” (Foto: Ana Alexandrino)

Da reflexão de entrar em isolamento por causa da pandemia provocada pelo novo coronavírus, pouco depois do carnaval e de uma temporada de dois meses em Salvador, foi surgindo “Baile de máscara”. “Estava gravando um álbum autoral, de inéditas, e ia escrevendo em um caderno as letras das músicas da minha mãe que eu queria botar na playlist. Fiquei muito ligada nas letras de quatro delas: ‘Meu escudo’, ‘Carnaval’, ‘Falso reinado’ e ‘Dia seguinte’. De repente, esse disco explodiu na minha frente. Quando eu vi, tinha o repertório, tinha exatamente quem eu queria que estivesse comigo. Chamei essas pessoas e tudo ficou pronto em duas semanas”, lembra Luana.

“Baile de Máscara é um disco em homenagem à minha mãe. É também resultado da reflexão sobre entrar em quarentena logo após o carnaval” (Foto: Reprodução Instagram)

O disco, produzido por Luana e Kassin, com a colaboração de VovôBebê (violão, guitarra, coro e gravação de vozes), tem a participação dos músicos Pretinho da Serrinha (percussões e cavaquinho), Cristina Braga (harpa), Dedé Silva (bateria), Rodrigo Tavares (teclados), Luis Filipe de Lima (violão 7 cordas), Marlon Sette (trombone) e Jorge Continentino (clarinete). Por causa dos riscos relacionados à Covid-19, todos gravaram remotamente, sem sair de casa. “Tinha muita sintonia acontecendo. O Kassin, além de grande produtor, é pesquisador e sabe de muita coisa. Já nos conhecíamos bem musicalmente e conversávamos muito, embora nunca tivéssemos trabalhado juntos. Fluiu muito fácil”, conta Luana.

“O que seria pra muitos a quaresma após a quarta-feira de cinzas, é, entretanto, uma quarentena de cinzas” (Foto: Ana Alexandrino)

Apesar da satisfação com o disco, Luana sente os efeitos do isolamento social, intensificados pelo processo de aprender a lidar com a perda de sua maior referência. “São dias e dias. Estou tentando passar cada hora. Há momentos em que dá muita saudade”, confessa. A situação que o Brasil atravessa é outra preocupação da artista. “Qualquer ser humano que tenha alma não pode estar feliz nesse momento”, resume. Mas, então, de onde tirar forças para enfrentar tempos tão difíceis? A resposta é a pequena Mia, de 2 anos. “Dentro dos meus privilégios, tenho uma filha que é uma luz. Ajuda muito a presença de uma criança, traz alegria”, afirma.

Diante do distanciamento pelo coronavírus, todas as participações no disco foram gravadas remotamente (Foto: Reprodução Instagram)

Em relação ao momento pós-pandemia, Luana oscila entre o pessimismo e a crença de que tudo dará certo. “Tem horas em que acredito no milagre e acho que alguma descoberta vai surgir, vinda de uma nação como o Brasil ou algum país da África, lugares marcados por uma história de exploração e um povo maltratado, mas com uma cultura muito rica. Levaríamos uma vida parecida com a de antes, só que com outra consciência”, pondera. Já a porção nem um pouco otimista da cantora é radical. “Um outro lado meu pensa que o mundo nunca mais será o mesmo. Por exemplo, quando vejo em filmes as pessoas circulando em um bar, abraçando as outras e se despedindo, acho muito estranho. Minha filha já passa álcool gel nas mãos naturalmente, talvez nunca viva da forma que vivi”, explica.

A artista também se incomoda com as pessoas que desrespeitam o isolamento social durante o período mais crítico do coronavírus. “Você não pode ser mais um fora de casa quando tem gente que precisa estar na rua”, acredita.