Flávia Souza e hipocrisia do ativismo na web: ‘Vídeos bonitos, mas não se importam com ações práticas’


A cantora e compositora lançou o segundo single do ano, ‘Cansei’, que joga luz sobre racismo e desigualdade social. Militante, negra e feminista, Flávia diz que fazer parte do movimento é uma luta diária: “Repetiremos nossas falas até nos respeitarem e buscaremos leis mais eficazes para que nos protejam. Precisamos sempre bater na tecla para as mulheres não naturalizarem costumes considerados comuns, mas que são de origem do patriarcado”. Responsável pela criação da Associação Cultural Grupo Afrolaje, no Méier, ressalta ainda as pessoas que diminuem a importância de pautas na internet. “De todos os debates gerados nas redes sociais, 30% ajudam as causas, mas 70% deles trabalham por conta da fake news e de pessoas se apropriando do ‘discurso bonito’, mas sem nenhuma prática”

*Com Bell Magalhães

A multiartista Flávia Souza disponibilizou o single ‘Cansei’, o segundo lançamento do ano de autoria da cantora. Trabalhando em meio à pandemia, a letra da música já estava pronta, mas a batida foi construída em parceria com o DJ Fabio Broa ‘95% à distância’. “O Fabio me mandava a base da música para eu aprovar ou não. No dia de gravar a voz, ele ficou o tempo inteiro de máscara enquanto eu cantava. Por conta da Covid-19, a música, infelizmente, não tem previsão de ganhar um clipe, mas eu e a gravadora temos o projeto”. A artista conta sobre as limitações de produzir com o distanciamento social: “Confesso que o novo modelo nos deixa desestimulados, mas é necessário para termos a nossa vida de volta em algum momento”. 

O ritmo do lançamento é o rap e o assunto é denúncia. Discriminação racial e desigualdade são os pilares da letra da música — “rico, branco, preto e pobre/ Somos todos humanos” — e propõe uma ilustração do Brasil atual, onde a pandemia escancarou a desigualdade e expôs que os mais afetados são pobres e a população negra. Para poder seguir com a luta, Flávia diz que a arte é imprescindível nessa jornada: “No meu caso, e em tantos outros, é uma forma de denunciar, elevar a autoestima e mostrar que estamos juntos e atentos. A música e a arte como um todo têm o papel de se comunicar de forma lúdica ou direta. Com amplitude, ela tem o poder de entrar em diversas casas, de qualquer país, e levar essa mensagem para o público refletir”, diz a rapper. 

"A música tem o poder de entrar em diversas casas, de qualquer país, e levar essa mensagem para o público refletir" (Foto: Natureza França)

“A música tem o poder de entrar em diversas casas, de qualquer país, e levar essa mensagem para o público refletir” (Foto: Natureza França)

Até os estilos musicais são usados com essa intenção. Flávia opta por elementos do soul, R&B, trap, afrobeat, jongo e maracatu nas suas músicas, de origem africana e brasileira. “São ritmos que sempre amei, mas por conta do racismo estrutural, é intencional também. A sociedade precisa entender e naturalizar a nossa cultura. Vivemos aqui e faz parte da nossa identidade. É uma forma de exaltar quem tanto lutou para que estas referências musicais e melódicas perpetuem em nosso convívio”. 

Aos 41 anos, Flávia tem uma trajetória linda e extensa ao lado do rap e do hip hop. Integrou o grupo Negros por Excelência e fez a abertura de grandes nomes da cena como Racionais MC’s, RZO e MV Bill. Em 1998, fundou o rap feminino Negresoul e é da diretoria Frente Nacional de Mulheres do Hip Hop, que busca a inserção das mulheres no meio. Durante a sua atuação, a cantora lembra da desigualdade do espaço: “Era uma época muito difícil e para as mulheres obterem sucesso, tinham que passar por longos anos de humilhações. Tínhamos que brigar para subir ao palco e quando subíamos, sempre acontecia de alguns ‘machos’ sabotarem o som ou algum produtor nos impedir de cantar”, conta.

Capa do single ‘Cansei’

E Flávia prossegue: “Foi muita luta e ainda é, mas na nossa época era muito pior (risos). Estes foram um dos motivos que me fizeram deixar o rap por 15 anos. Fui me destacando e sendo chamada para fazer musicais, que me traziam paz, mas o hip hop jamais saiu de mim. Sabia que voltaria ao rap um dia, só não imaginei agora, aos 40, e em um momento que não dá para fazer shows e nos promover tradicionalmente”, desabafa

Militante e ativista das causas negra e feminista, a compositora diz que fazer parte do movimento é uma luta diária: “Repetiremos nossas falas até nos respeitarem e buscaremos leis mais eficazes para que nos protejam. Precisamos sempre bater na tecla para as mulheres não naturalizarem costumes considerados comuns, mas que são de origem do patriarcado”. Outro problema para lidar é o das pessoas diminuindo a importância de pautas na internet. A cultura do cancelamento e termos como ‘mimimi’ e ‘exposed’ mais atrapalham que ajudam pessoas no front da resistência. “De todos os debates gerados nas redes sociais, 30% ajudam as causas, mas 70%  deles trabalham por conta da fake news e de pessoas se apropriando do ‘discurso bonito’, mas sem nenhuma prática. Falta contato de verdade, proximidade”.

“Hoje não podemos estar juntos fisicamente, mas desde antes da pandemia muitos são hipócritas. Falta empatia e chegar junto de verdade. Cada um fica no próprio mundo fazendo vídeos bonitos, com falas lindas e citações potentes, mas a maioria não se importa com ações práticas. Só iremos avançar com ações práticas e isso é um exercício diário pois estamos em construção”, afirma.

"Cada um fica no próprio mundo fazendo vídeos bonitos, mas a maioria não se importa com ações práticas" (Foto: Zu Ribeiro)

“Cada um fica no próprio mundo fazendo vídeos bonitos, mas a maioria não se importa com ações práticas” (Foto: Zu Ribeiro)

Para quem se vê cansado pelo racismo, injustiças, lutar pelos próprios ideais e pensa em desistir, Flávia é categórica e relembra o sentido de coletividade: “Não desista! Somos ‘UBUNTU’ — ‘eu sou porque nós somos’. A mudança é lenta. Poderia ser melhor, mas está acontecendo. A geração mais nova e nossos ancestrais são a nossa referência e continuidade. Não desista de ‘nós’!”

Além da música

A fome, sobretudo, é a realidade de muitos brasileiros. Recentemente, a fome no país superou a taxa anterior à criação do Bolsa Família. Um levantamento feito por pesquisadores do grupo ‘Alimento para Justiça’, uma parceria entre a Universidade Livre de Berlim, Minas Gerais (UFMG) e Brasília (UnB) constatou que 27,7% da população passou por insegurança alimentar grave ou moderada no final do ano passado, o equivalente a 58 milhões de habitantes, um aumento de 64,8% em relação aos números de 2004.

Fora a carreira musical, Flávia luta contra essa estatística com o projeto ‘É Nós por Nós’, que entrega quentinhas para pessoas em situação de rua. “De um lado, só filé, e do outro, ovo frito, mas agora não existe isso. Ao longo do tempo no qual estamos trabalhando, percebemos que o número de pessoas em situação de rua é formado majoritariamente por pessoas negras. Por que será? Será que quando canto ‘a cor, a cor é causa de dor’ estou me vitimizando?”, desabafa. 

"Será que quando canto ‘a cor, a cor é causa de dor’ estou me vitimizando?" (Foto: Natureza França)

“Será que quando canto ‘a cor, a cor é causa de dor’ estou me vitimizando?” (Foto: Natureza França)

A cantora também é responsável pela criação da Associação Cultural Grupo Afrolaje, no bairro do Méier, Zona Norte do Rio. O projeto é responsável pelo resgate cultural afro-brasileiro e promove aulas e encontros para a prática de jongo, capoeira angola, maracatu e samba de roda. Flávia espera aumentar o alcance do conhecimento cerceado por conta do racismo. “Usamos atividades recreativas para apresentar o contexto histórico das manifestações afro-brasileiras e criar essa rede de afeto e estudo afrocentrado”. Hoje, por conta do distanciamento social, todas as atividades são feitas remotamente por meio de lives e vídeos. “Tem sido um acalanto poder continuar o nosso trabalho, mesmo que dessa forma. Além de podermos seguir com a nossa iniciativa, torná-la virtual nos conectou com outras pessoas, o que aumentou consideravelmente o público assistido pelo projeto”, conta a cantora.

O que podemos esperar de Flávia? “Durante a pandemia escrevi 13 músicas e as lançarei aos poucos. Também estou produzindo um documentário batizado ‘Nós Desembaraçando Nós’, idealizado por mim e Ariane Hime. Ele aborda a saúde mental da população negra, dando continuidade com os trabalhos do Afrolaje. Estou pensando em escrever uma peça teatral infantil e já tem nome: ‘Menina Semente’”.