* Por Carlos Lima Costa
Para celebrar o Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, instituído em homenagem à líder quilombola Tereza de Benguela (1700-1770) e ajudar na promoção de uma sociedade mais justa e igualitária, Zezé Motta, um dos maiores ícones negros da cultura brasileira, foi a estrela do especial Zezé Motta – Mulher Negra. “Um dia, li no jornal que a socióloga Lélia Gonzales (1935-1994) ia ministrar um curso sobre cultura negra. Logo na aula inaugural ela disse: ‘Gostaria de lembrar que não temos mais tempo para lamúrias, temos que arregaçar as mangas e virar o jogo’. Foi importante para mim esse discurso. É o que eu tenho feito, em vez de ficar me lamentando, batalhei pela minha carreira, consegui e fico muito feliz de servir como exemplo para outras gerações de jovens negros para que não desistam do sonho. Arregacem as mangas e sigam em frente”, pontuou ela, no especial, com equipe formada por mulheres, transmitido pelos canal L!ke e pelo canal oficial do Teatro Bradesco do YouTube.
Também cantora, Zezé interpretou Tigresa, composição de Caetano Veloso, acompanhada da maestrina e pianista Claudia Elizeu, no especial apresentado pela atriz e influenciadora digital Luana Xavier e por Rafaela Pinah, mulher trans, colunista e diretora criativa do Coolhunter Favela. “Essa música é maravilhosa, começamos com chave de ouro, ainda mais na voz da Zezé. Peço licença para falar um texto meu que celebra o dia de hoje. Somos herdeiras do legado de Zezé, Léa (Garcia), Ruth (de Souza – 1921-2019), Neuza(Borges), Cléa (Simões – 1927-2006), Duh (Moraes), Zeni (Pereira – 1924-2002), Chica (Xavier – 1932-2020) e tantas outras guerreiras da arte, somos filhas do afeto, protagonistas de histórias, marcadas por sofrimento, mas também pela resiliência. Somos frutos da batalha de muitas, somos colo para os nossos e para os outros que necessitem também, somos elo entre passado, presente e o futuro. Somos ventania, tempestade e trovão quando desmerecem a nossa conquista, mas também somos brisa e calmaria quando nasce mais uma de nós. Somos pele retinta, mas também somos a soma de outras cores…Mais do que isso tudo somos forjadas na luta… E Zezé, nós somos, porque você é, obrigada, axé”, disse.
Ao longo da produção, Zezé foi bastante reverenciada pelas participantes mais jovens como uma referência. “Ela é um ícone para nós mulheres negras”, disparou a pianista. Outras representantes da raça negra, que em suas áreas também inspiram, deram seu testemunho em depoimentos pré-gravados. “A atuação política de mulheres negras é fundamental pra gente repensar a nossa sociedade. É importante que a gente tenha oportunidade de estar presente em lugares de decisão para pensar uma nova sociedade. Não tem como a gente refletir criticamente sobre a sociedade enquanto não estivermos juntas pautando, pensando saídas emancipatórias. O quanto que as mulheres negras trazem dos seus lugares sociais uma série de visões e experiências que são fundamentais para a gente refletir e pensar outros modelos de sociedade, que não seja pautadas nessas violências cotidianas. E Zezé, sou sua fã, profunda admiradora, você abriu muitos caminhos pra nós”, disse a filósofa Djamila Ribeiro.
“A gente não pode deixar de abordar sobre a mulher negra do Brasil sem falar na pirâmide social de gênero e raça que nos coloca na base, no final dessa pirâmide. A mulher negra é a maior vítima de homicídio em relação à mulher branca, ela possui os menores salários, o maior número de analfabetismo, ou seja, um grande desafio pela frente, que muda em passos lentos…A nossa luta não vai parar até a gente ver de fato essa transformação”, frisou a youtuber e ex-BBB Camilla de Lucas.
Veio, então, o depoimento da cantora Iza: “É importante que a gente tenha referências na nossa caminhada. Eu tenho mentoras e referências incríveis e fico feliz de saber que hoje nós somos próximas. Taís Araújo é uma mulher incrível que me inspira muito, Bebel (Isabel) Fillardis, Zezé Motta. É importante que a gente se veja nos lugares, enfim, quem não sente essa necessidade não faz ideia do quanto isso muda a nossa vida. Me sinto feliz de hoje poder dizer que tenho uma rede de apoio, que a gente precisa ser cuidada. Em muitos lugares as nossas histórias se cruzam, então, muitas vezes a gente tem as mesmas cicatrizes e é muito importante que a gente esteja sempre em contato uma com a outra. Isso facilita o nosso trabalho, a nossa carreira, o nosso estar nos lugares. Zezé você é maravilhosa, uma rainha, fico muito feliz de fazer parte dessa live. Queria poder ter me visto muito mais nos lugares, mas a gente está caminhando para a mudança.” O especial contou ainda com depoimentos das atrizes Indira Nascimento, Cris Vianna e Elisa Lucinda, e da escritora Conceição Evaristo.
Depois de rasgados elogios de que ela é uma inspiração, Zezé disse: “Tenho me emocionado muito também, porque todos os trabalhos que tenho feito em cinema, televisão ou teatro, tenho visto mais mulheres na produção, na direção e quando tem mulheres e são negras, a emoção é dobrada, porque nós sabemos o quanto custa a nossa luta para ocupar espaços”, observou Zezé, que acaba de filmar o longa-metragem As Bisnetas, de Marco Cavallaria. E está escalada para as séries Arcanjo Renegado e Fim, ambas na Globo.
Em evento que mesclou pocket show com entrevista, Zezé lembrou o cantor e compositor Luiz Melodia (1951-2017). Primeiro com a canção Magrelinha. “Essa é muito importante no meu repertório e ele é um dos compositores que mais me emociona. Tive o privilégio de ter sido a intérprete que mais cantou e canta Luiz Melodia. Da saudade, mas ele continua vivo através da sua obra. Essa é uma das vantagens de fazer parte da cultura, de interpretar, compor, tocar um instrumento, porque você se eterniza. Você se vai e sua obra fica”, pontuou Zezé, que encerrou o especial com outro grande hit de Melodia, Pérola Negra. Desta vez, fez dueto com a jovem cantora de R&B e hip hop Malía, que já havia mostrado dois de seus sucessos, Zé do Caroço e Arte. “Sou sua fã”, disparou Zezé para Malía, que foi com um look inspirado na veterana artista. “É verdade, não tem como, o que você fez por nós, pelo Brasil, pela sua representatividade. Isso respinga em todos nós jovens e é importante que eu fale sobre isso também sendo uma menina negra de 22 anos”, disse Malía.
Durante o especial, Zezé falou, por exemplo, sobre o Retiro dos Artistas. “Tenho honra de ser vice-presidente. Fico emocionada, porque nossa função é dar carinho, calor, afago para pessoas que nos fizeram felizes enquanto estavam em atividade”, afirmou ela que lembrou ainda seu papel mais emblemático: A personagem título do filme Xica da Silva. “Foi uma emoção muito grande quando conquistei o papel e olha que eu não tinha a menor ideia de que o filme fosse fazer esse sucesso tamanho no mundo inteiro. Mas só o fato de estar protagonizando pela primeira vez um longa e do Cacá Diegues com essa personagem maravilhosa foi emocionante”, recordou. Zezé respondeu ainda como era estar estreando com uma coluna na Vogue. “Fiquei emocionada com esse convite, porque é mais um desafio na minha vida e eu adoro ser desafiada (risos). Vai ser uma experiência bem gostosa”, explicou a atriz de 77 anos e mais de cinco décadas de carreira.
Enquanto falavam sobre produtos dos patrocinadores, Zezé foi enfática sobre dois temas: “Sou de um tempo onde não existia maquiagem para o meu tom de pele. Graças a Deus as coisas estão mudando. Algumas estão devagar, mas outras estão aí com grandes revoluções”, disse. E ao abordar um produto para cabelo, ressaltou outra história. “Quando eu era adolescente, diziam que meu cabelo era ruim, que meu nariz era chato e que meu bumbum era muito grande. Então, sofri um processo de embranquecimento. O que aconteceu. Cheguei nos Estados Unidos usando uma peruca Chanel, que era última moda. Aí foi uma situação horrível, porque eu fui fazendo um espetáculo musical em homenagem ao Zumbi dos Palmares (1655-1695), em 1969. Nesse espetáculo, direção do Augusto Boal (1931-2009), em alguns momentos, cada momento um de nós se apresentava como o Zumbi. Zumbi com peruca Chanel, não deu certo (risos). Fizemos uma apresentação no Harlem, onde chamaram o Boal e falaram “O que essa alienada está fazendo no seu elenco? Ela não nos representa.’ Aí o Boal veio, sem graça, me contar essa história e aí a ficha caiu. Naquela mesma noite tirei a peruca. Mas eu alisava o meu cabelo. Na época, não tinha os produtos de hoje, a gente alisava com ferro quente, então, qualquer chuvisco o cabelo voltava ao natural. Assim, molhei e assumi meu cabelo com as características da minha raça. Cada um pode usar o cabelo do jeito que quiser, mas eu estava sendo incoerente. Aquela chuveirada foi como um batismo, me libertar dessa coisa de achar que meu cabelo era ruim”, relatou ela que sempre lutou pelo espaço para os artistas negros.
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