Um menino, se descobrindo gay, revelou sua orientação sexual para a família e, diante da reação negativa, foi surrado pelo irmão mais velho e pelo pai, precisando de socorro médico e hospitalização. A história, real, foi uma das inspirações para Caio Paduan se preparar para viver Victor, um homossexual que tem a tarefa de escrever uma carta para si mesmo com tudo aquilo que sua versão adolescente gostaria de escutar, no curta metragem “Sobre papéis”. De cunho extremamente social, a interpretação de Caio na produção reflete um conservadorismo ainda latente na sociedade, que ele reconhece, porém não concorda e nem credita culpados. “Durante muitos anos a igreja vem moldando a sociedade e seus valores. Isso é história da humanidade, mas acredito que o ser humano tem a opção de escolha: escolher não odiar”, disse em entrevista exclusiva ao HT.
Escolha também vai do próprio público, que opta por boicotar tramas homossexuais, e do mercado cinematográfico, que exclui projetos dessa abordagem em circuitos comerciais. Caio, mais uma vez, não culpa. “Apenas não concordo. Tenho a impressão de que com cuidado e feito de forma criativa e não ofensiva , vamos transformando pensamentos e atitudes em relação ao tema. Se não falamos beijo hétero porque falamos beijo gay? É um ato de afeto, é um beijo”, questionou, indo além com lucidez: “Existe um receio da indústria sim, pois houve algumas tentativas e o conservadorismo de boa parte do público o afastou das salas de cinema quando os filmes eram com essa temática”.
Sob direção de Pedro Paulo de Andrade, “Sobre papéis” já participou do 26º Festival Internacional de Curtas Metragens de São Paulo, do Film Hub Wales (FHW), do British Film Institute (BFI), em Londres, e foi premiado como Melhor Roteiro no 22º Festival Mix Brasil de Cultura da Diversidade. E não só: o filme foi o único brasileiro eleito a concorrer no Iris Prize Festival – Cardiff’s International LGBT Short Film Prize, da Michael Bishop Foundation, em Cardiff, capital do País de Gales. Reflexos de como a sétima arte pode derrubar as barreiras do preconceito com voz de credibilidade. “Podemos modificar a sociedade em que vivemos e torná-la mais respeitosa em relação à individualidade de cada um”, desejou.
Em um papo cabeça e são com HT, Caio Paduan ainda falou sobre a receptividade do público nos festivais, a era dos amores efêmeros e o classicismo, assuntos que outro personagem seu, o Afonso de “Além do tempo”, trouxe à tona em um horário de grande audiência com conversa direta com a massa. Avante.
HT: Filmes de temática gay (por mais que seja um curta) como “Sobre papéis” não costumam ocupar as salas dos grandes cinemas, aquelas de cunho comercial. Eles acabam entrando em cartaz nos cinemas undergrounds, lado B. O preconceito está na indústria?
CP: Penso que existe um receio da indústria sim, pois houve algumas tentativas e o conservadorismo de boa parte do público o afastou das salas de cinema quando os filmes eram com essa temática. Mas existe um movimento muito forte do cinema nacional hoje – que deve ser cada vez mais auxiliado e incentivado pelo governo -, feito por mentes de verdadeiros apaixonados pela sétima arte que está, aos poucos, conseguindo mudar esse panorama pra melhor.
HT: No seu laboratório sobre bullying homossexual para o filme, o que mais te chamou atenção? Conta como foi o processo e qual história lhe vem à cabeça com mais recorrência?
CP: Eu fui atrás de histórias de amigos próximos. Tenho vários amigos homossexuais e fiquei horrorizado com algumas coisas que ouvi. São histórias horríveis. O preconceito destrói de uma forma que é difícil reparar novamente sozinho, machuca muito. Na adolescência, principalmente, que onde o ser humano está se formando, descobrindo sensações, sentimentos. Em uma das histórias que ouvi, o irmão mais velho e o pai de um garoto que estava se descobrindo homossexual, deram uma surra no menino, que teve que ir pro hospital. Fiquei horrorizado com a realidade que encontrei, mas foi essencial para retratar com o maior respeito, carinho, e dedicação possíveis esse personagem. Além disso, fisicamente busquei construir alguém que foi obrigado a viver retraído, tenso por conta do que vivia e fui em busca das nuances de personalidade para interpretar o mesmo personagem com 17 e 27 anos. Um baita desafio, mas com a ajuda do diretor Pedro Paulo de Andrade, que foi essencial. O Victor, meu personagem, foi um presente para tentar alertar o que acontece com muitos jovens na família e na escola.
HT: Se há um bullying homossexual, parte-se do princípio que há um conservadorismo que gera esse preconceito. Qual parcela de culpa que a igreja tem nessa história?
CP: Sim, há um conservadorismo em relação à homossexualidade, mas não acredito em “culpados”. Durante muitos anos a igreja vem moldando a sociedade e seus valores, isso é história da humanidade , mas acredito que o ser humano tem a opção de escolha: escolher não odiar. Não ao ódio, não à discriminação, não ao preconceito. Não julgo o posicionamento da Igreja, mas acredito que as pessoas, pensando no amor ao próximo, deveriam simplesmente respeitar qualquer sexualidade. E como isso surge, quase sempre, numa época tão delicada do desenvolvimento de uma pessoa, como é a adolescência, a atenção e o carinho deveriam ser redobrados.
HT: O grande barato dos festivais é acompanhar a reação do público – risadas, comentários mais exaltados e, como sempre, o número de pessoas que se levantam no meio da sessão. Qual o feedback que você tem?
CP: Eu amo os festivais de cinema! A oportunidade de assistir a vários tipos de filmes, de diferentes cidades do país ou mesmo de países diferentes me encanta. Tive a oportunidade de assistir o “Sobre Papéis” na estreia, que aconteceu no Festival Mix Brasil 2014 – e saiu como vencedor de Melhor Roteiro – e foi sensacional presenciar a resposta do público ali, na hora. As reações são rápidas, sinceras, e fiquei feliz que apenas duas pessoas se levantaram e foram embora. Tempos atrás seriam 10? Ou 15? Isso demonstra que estamos evoluindo! Só fico triste porque essas duas pessoas perderam um lindo filme! (ri). Através da arte podemos modificar a sociedade em que vivemos e torná-la mais respeitosa em relação à individualidade de cada um!
HT: Beijo gay na televisão ainda não é visto com tanta tranquilidade como na sétima arte. É por medo da massa? Qual sua opinião sobre isso?
CP: Penso que existe um tempo para tudo e não condeno a atitude de boa parte do público brasileiro. Apenas não concordo. Tenho a impressão de que com cuidado e feito de forma criativa e não ofensiva , vamos transformando pensamentos e atitudes em relação ao tema. Se não falamos “beijo hétero” porque falamos “beijo gay”? É um ato de afeto, é um beijo.
HT: No século XIX, primeira fase de “Além do Tempo” o Afonso era um homem romântico. Muito possivelmente, em 2015, ele não teria o mesmo comportamento, vide a nossa realidade nessa era de amores líquidos. Por que não temos tantos Afonsos, no quesito comportamental da coisa, atualmente?
CP: Acredito que exista um amor romântico, da mesma forma e da mesma intensidade que o Afonso do século 19; mas acredito também que no tempo e sociedade em que vivemos, tudo é muito efêmero. As informações circulam muito rápido, e acredito que isso interfere no ser humano. Como pessoas, mudamos. Temos outras reações, é outro tempo. E isso acaba afetando todas as relações, sejam elas amorosas ou não. Se tem menos tempo para viver as questões pessoais por conta do mundo, da vida profissional, do excesso de tecnologia. Naquela época, as pessoas tinham tempo para parar uma tarde e só ler poesia, por exemplo. Hoje, enquanto você lê um livro ou poesia, você mexe no celular, ou no computador. É tudo muito corrido. As pessoas tem que se permitir guardar o tempo e guardar momentos, para poder amar dessa forma, poder se declarar dessa forma que o Afonso faz. Tenho um exemplo disso em casa: meu pai dá flores para minha mãe e mantém esses momentos mesmo tendo trabalhado muito a vida inteira. Eu sigo esse exemplo e tento passar isso adiante. O amor precisa de tempo.
HT: A mãe do Afonso insistia em que ele se relacionasse com uma mulher de nível social mais alto do que aquele amava. E, novamente, fazendo esse paralelo com os dias atuais, a discussão sobre o classicismo está cada vez mais aflorada, num mundo onde os ricos e pobres deveria viver, segundo um discurso separatista, em condições diferentes. Enxerga luz no fim do túnel?
CP: Vejo, sim, luz no fim do túnel, mas discordo absolutamente desse classicismo. Acho que faz mal às pessoas, faz mal ao crescimento de uma sociedade. A Zilda não só alimentava esse classicismo em relação à Anita, mas também aos outros empregados, e na maneira como ela acreditava que eles devem ser tratados. Afonso acredita numa igualdade de valores, para que as relações se estabeleçam de uma forma respeitosa, independente do cargo do empregado. Tem uma frase do Afonso que é maravilhosa e que mostra bem o que ele pensa: “O estímulo positivo é muito mais produtivo que a punição”. Nos dias de hoje, entendo o que está acontecendo em relação a esse separatismo, mas abomino. Acredito numa igualdade de classes, de oportunidades, e que as pessoas consigam conviver bem buscando o que desejam para sua vida sem divergência de oportunidade. Acredito que as nomenclaturas “pobres”, “ricos”, “classe média”, estão defasadas hoje. As pessoas não deveriam se rotular como uma classe menor ou maior. Somos todos cidadãos de uma sociedade democrática, e devemos viver em paz e “lutar” em condições iguais, sendo que isso deve ser proporcionado pelo governo! Acredito que a diferença que existe até em relação às mulheres, ou em relação aos negros, por exemplo, é completamente retrógrada, absurda e triste para a sociedade brasileira. Mas vejo luz no fim do túnel, existem pessoas boas pensando de forma coerente, igualitária. Acredito que o Brasil já mudou muito em relação a isso, mas precisa e vai mudar mais. Sou positivo, sempre serei, e acredito num país melhor para todos nós.
HT: O que você pretende fazer futuramente no âmbito profissional?
CP: Sou muito apaixonado pelo palco! Terminando a novela com certeza volto a ele, mas também existem possibilidades no cinema e na própria televisão, vamos aguardar os próximos capítulos! (ri). A única certeza sempre será o teatro.
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