Você já deve ter ouvido falar que vivemos em épocas de amores líquidos, certo? Não? Mas que o celular está acabando com o olho no olho já? E que a velocidade das relações – e das informações – é tão rápida que tudo anda ficando descartável? Na certeza que algum desses males da nossa sociedade já chegou aos seus ouvidos, HT foi conversar com Vinicius Calderoni, músico, empresário, dramaturgo, ator e diretor de teatro. Ele deu o pontapé nos seus trabalhos como escritor com “Não nem nada”, uma peça que versa muito bem sobre esses pontos que abrem o texto. Do espírito do tempo até a troca de informações, o espetáculo conversa sobre um assunto que merece explanação e com uma turma pouco esquecida na ribalta: os jovens. “Talvez o teatro esteja falhando nessa investigação do agora, do instante presente, ou de fazer sua linguagem conversar com a mudança dos tempos. O que talvez configure um fator de distanciamento dos mais jovens”, opinou.
Calderoni é um daqueles que vai contra essa história de que olho no olho virou démodé, por exemplo. “Acho que para as pessoas realmente integradas nos seus afetos, o olho no olho é insubstituível. A gente pode ter vários aplicativos e redes sociais, mas a presença do outro é irreprodutível. Não é à toa que eu faço teatro e shows, duas artes presenciais”, se usou para exemplificar. A rapidez nas relações, outro terrível mal, é questão de auto observação, garantiu o autor. “O espetáculo tenta nos colocar justamente nesse estado de contemplação sobre a loucura dos nossos cotidianos, do volume de informações e frases e imagens e eventos que nos atravessa sem que a gente consiga se dar conta”.
Esse retrato das nossas próprias neuras, que está em cartaz até 30 de agosto no Teatro Poeirinha, também recai sobre essa fixação do brasileiro por celebridades. Até porque, vamos negar que tem muita gente por aí que adora endeusar um artista ou um cantor? “É um pouco da essência do humano querer saber do outro, querer desejar a vida do outro, esse fascínio com a fama como se a fama fosse uma terra prometida, um lugar a se alcançar. No fundo, acho que é a eterna insatisfação humana, de sempre achar a grama do vizinho mais verde”, recorreu Calderoni.
E se a gente está sempre se espelhando no outro, arregalando os olhos para o mundo do showbiz, isso quer dizer que nós temos uma quedinha pela superficialidade? Calderoni tenta explicar: “Prefiro não pensar na sociedade como um todo e sim nas pessoas que a compõem e com as quais eu tenho contato. Acho que, no fim, existem pessoas mais superficiais e outras mais profundas. Mas acho que não dá para fazer generalizações nesse aspecto, porque ninguém é uma coisa só. Temos muitos aspectos dentro de nós mesmos”.
Todas essas análises foram tão bem abordadas e encenadas por Geraldo Rodrigues, Mayara Constantino, Renata Gaspar e Victor Mendes na estreia, que “Não nem nada” recebeu duas indicações ao Prêmio Shell 2014 nas categorias “Melhor autor” para Calderoni e “Melhor atriz” para Renata Gaspar. Nada mal para sua estreia como dramaturgo. Um dos sócios da companhia Empório de Teatro Sortido, Calderoni também faz parte do quinteto musical 5 a Seco. Com tanta coisa para tocar, tenta (repetindo: tenta) equilibrar tudo em perfeita harmonia. Até porque, a gente bem perguntou, mas ele não consegue escolher um lado para focar.
“Com o perdão do clichê, é como escolher um filho que se gosta mais. Acho que são áreas maravilhosas, complementares, mas que me dão muita alegria e me fazem sofrer também, porque tudo que a gente quer fazer muito bem também causa um sofrimento grande”, confessou. Como então dar conta de tantas funções? “É um pouco como aqueles treinos de academia que eles chamam de descanso ativo: você descansa de um exercício de braço fazendo um de perna; depois descansa da perna fazendo abdominal e assim por diante. No meu caso, eu descanso da música no teatro, do teatro no cinema, do cinema na música. Mas parar de verdade não está dando e não tenho do que reclamar”.
E não tem mesmo não. Em setembro, o espetáculo “Ãrrã” estreia em São Paulo, o segundo da trilogia “Placas tectônicas”, iniciada com “Não nem nada” e que se encerrará com “Chorume”. O espetáculo é escrito e dirigido novamente por Calderoni e interpretado por Luciana Paes e Thiago Amaral, dois paulistanos. “Ele investiga várias questões que no ‘Não nem nada’ aparecem como apontamentos mas não são aprofundadas”, contou. Por exemplo? “O fato de que o nosso pensamento quase sempre está num lugar diferente do que nós estamos fisicamente. Também investiga muito qual é o lugar da alteridade dos nossos tempos: o outro pode ser objeto de fascínio, de desejo, de rivalidade, um alvo a ser aniquilado e assim por diante”.
Papo cabeça que não tem fim. Na gaveta, Calderoni já tem mais sinopses. Uma delas ele entregou para HT: se chama “Os arqueólogos”. “Escrevi há cerca de um mês e deve estrear no ano que vem, em São Paulo. Tenho também outros textos que pretendo escrever, ainda esse ano, se possível, como ‘O vazio da palavra tudo’, um projeto de um musical para o qual também quero compor as canções. É sobre um homem que reconstrói seu mundo interior após o término de um relacionamento enquanto o mundo real está acabando”, relevou, já emendando com os planos da música, com fôlego de sobra.
“No 5 a Seco vamos ficar esse ano e o ano que vem fazendo os shows da turnê do ‘Policromo’, nosso segundo álbum, e devemos lançar algo novo em 2017. Na minha carreira solo, estou pensando em começar a gravar um novo disco no ano que vem, compondo e reunindo canções aos poucos”, adiantou. Falando de projetos mil com a tranquilidade que conta um causo, Calderoni não é ríspido nem quando a gente toca num assunto delicado de seu meio: a estagnação da cultura no atual governo Dilma Rousseff. “Como artista, eu acredito que sempre há maneiras de fazer escoar nossas produções. E certamente vivemos uma situação muito melhor do que há vinte anos, creio eu. Não estou dizendo que é fácil realizar, mas parafraseando meu amigo Felipe Rocha, se você escolher ser artista, ninguém falou que seria fácil”. Recado dado.
Serviço
“Não nem nada”
Local: Teatro Poeirinha (Rua São João Batista, 104 – Botafogo)
Informações: 2537-8053
Capacidade: 50 lugares
Temporada: até 30 de agosto
Dias e horários: Sextas e sábados, às 21h. Domingos, às 19h
Ingressos: R$ 40 e R$ 20 (meia)
Classificação etária: 14 anos
Gênero: comédia
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